- Não conte,
mostre.
A regra de
ouro quando vamos narrar um texto é nunca contar uma história, mas sim
mostrá-la ao leitor. Quando o leitor acompanha, palavra após palavra, tudo o
que acontece com o seu personagem, ele precisa passar pela experiência de
vivenciar o que o personagem vivencia. Assim, você não deve contar algo ao
leitor – a menos que queira apressar algum trecho. Para proporcionar tal
vivência, é preciso mostrar.
Fazer isso
não é tão difícil quanto parece. Imagine que sua história será retratada num
filme. Quando você imagina seu personagem nervoso, à beira de ataque de nervos,
que ações ele tem que podem demonstrar isso? Ele rói unhas, morde as cutículas
nos cantinhos dos dedos? Ele bate a ponta do pé insistentemente no chão? Ele,
de pernas cruzadas, insiste em balançar a perna que está por cima? Ele bufa,
inspira fundo, engole em seco? Pense visualmente como você pode transmitir isso
ao leitor.
Pense também
que as características do seu personagem, seu passado, sua vida antes de a
história começar, também são refletidas pelas ações que ele faz, pelas decisões
que ele toma. Alguém que tenha sido picado por cobra ficaria fissurado em olhar
para o chão caso precisasse se embrenhar pelo meio da mata – e só entraria
depois de muito hesitar, depois de esgotar todas as possibilidades possíveis
para evitar fazê-lo.
Se você quer
caracterizar um cenário, ou usar um elemento vinculado (olha a arma de Tchekov
aí), não precisa de um longo de trecho de descrição. Isso pode ser tedioso.
Faça tal objeto aparecer em alguma cena antes de ser necessário, para não
correr o risco de transformar a solução em deus
ex-machina. Assim, você precisa criar uma cena em que seu personagem se
relacione com tal objeto antes mesmo de ele ser necessário. Se seu personagem
vai acabar matando a amante com um picador de gelo, ele precisa ser mostrado
como um apreciador de uísque, por exemplo. Ou ela, já que ele pode usar como
arma um objeto com o qual a amante tenha se relacionado. Não se esqueça de
pensar na função da sua cena antes de escrevê-la.
Desembarco do elevador no meu andar. O
prédio me é novidade, ainda não tem cheiro de lar, como meu antigo local de
trabalho. Há uma frieza nos espaços, que
se preenche com o toc-toc dos meus scarpins Louboutin batendo no porcelanato. Nudes, para não chamar a atenção, já que minha
jaqueta vermelha já é chamativa por si só. Como toda mulher, sei que às vezes preciso do poder que o vermelho me
traz. Vermelho, como os batons das pin-ups. Vermelho, como a maçã da Branca de Neve, ou a do pecado de Eva.
Vermelho, como as unhas roídas da pobre menina na Caverna ontem à noite.
No fim do corredor, encontro Fernanda, minha
secretária. Quando aceitei o trabalho na
Lupus, depois da incorporação da minha antiga construtora, La Rouge, fiz
questão de mantê-la comigo. Há coisas pelas quais vale a pena lutar.
“Bom dia, chefa. Preparada?” Ela sorri, e
tenta me transmitir calma. Na maioria das vezes funciona, mas não hoje.
“Acho que sim.” Solto o ar da boca com força, enchendo as bochechas e fazendo um bico.
Deixo sobre sua mesa uma caixa de acrílico com nove cupcakes. “Poderia guardar para mim até a hora da
reunião?” Ela encara os bolinhos com olhos de criança travessa. “São para os
arquitetos da minha equipe.” Ainda soa estranho, minha equipe – é como se as
palavras não servissem em minha boca. “Um deles é seu, e o outro é meu, que
ninguém aqui é de ferro, certo?”
Ela sorri e assente com um gesto de cabeça. Uma secretária que vivesse de dieta não
serviria. Preciso de alguém que me acompanhe sem culpa nos doces, de vez em
quando.
Minha sala nova tem os mesmos móveis da
antiga sede da La Rouge. Eu planejei a decoração, e tenho um apreço especial
por cada um daqueles elementos. Deixo minha bolsa no armário, olho a parede. Ajusto
a posição de um dos quadros, que está levemente inclinado. Puxo a cadeira,
sento-me junto à mesa. Ajeito a posição de uma maçã de cristal, com a folha virada para o lado esquerdo.
Uma lascada na quina da mesa, do lado direito, implora pela atenção dos meus
olhos. Corro os dedos pelo machucado, áspero. Bufo. Os carregadores deveriam
ter tido mais cuidado. Devem ter deixado cair uma chave de fenda ali. Olho com
mais cuidado o tamanho do rombo: uma chave de fenda, não; um martelo. Uma chave
jamais faria um estrago daqueles.
(Em pele decordeiro – Andreia Evaristo)
“Há
uma frieza nos espaços, que se preenche com o toc-toc dos meus scarpins
Louboutin batendo no porcelanato. Nudes,
para não chamar a atenção, já que minha jaqueta vermelha já é chamativa por si
só.” Nesse trecho, há uma
descrição de Louise – sua forma de se vestir para demonstrar poder, um poder
feminino, já que ela é uma defensora do direito das mulheres.
“Quando
aceitei o trabalho na Lupus, depois da incorporação da minha antiga construtora,
La Rouge, fiz questão de mantê-la comigo. Há coisas pelas quais vale a pena
lutar.” Aqui, há uma descrição da personagem Fernanda, a secretária,
pela visão da protagonista Louise, e da relação estabelecida entre as duas.
“Solto
o ar da boca com força, enchendo as bochechas e fazendo um bico.” Que
tipo de sentimento a personagem está expressando com essa ação? O que mudaria
na sensação do leitor se esse trecho fosse substituído por “Definitivamente, estou nervosa.”?
“Uma
secretária que vivesse de dieta não serviria. Preciso de alguém que me
acompanhe sem culpa nos doces, de vez em quando.” Louise é uma mulher
em busca de parceria, não quer se sentir sozinha – e, diferente da maioria das
mulheres, não está preocupada em correr atrás de um corpo esquálido de quem não
come.
O último
parágrafo desse trecho serve para caracterizar Louise como uma mulher paranoica
em relação à organização, alguém com transtorno obsessivo compulsivo (TOC). Mas
é mais do que isso: o fato de ela ser extremamente detalhista, observadora e
analítica é um elemento vinculado, que vai se tornar essencial na solução de um
dos mistérios da trama. A maçã de cristal é uma referência – das muitas que
aparecem no texto – aos contos de fada, e vai ser arremessada contra a parede
assim que Aurélio Lobo sair pela porta.
- Evite filter words (assistir, decidir,
experimentar, imaginar, notar, olhar, ouvir, parecer, pensar, perceber,
poder, saber, sentir, ser capaz de, ver...)
Palavras-filtro
servem como um elemento de separação entre o leitor e o texto. Não é que elas
não possam ser usadas: podem, mas é preciso certo cuidado. Quando o escritor
abusa das filter words, ele acaba
contando a história em vez de mostrá-la – e isso afasta o leitor, impede que o
leitor seja inserido na história.
Coloque ação
no seu texto. Entenda: seu personagem é o que ele faz – seja como ação, ou como
reação. É muito comum que, no início do texto, seu personagem seja mais reativo
e, com a evolução na sua jornada, ele se torne mais ativo. Ainda assim, vou
repetir: seu personagem é o que faz. Ele não é o que pensa, o que sente, o que
imagina, o percebe... Personagem é igual a ação. É isso que move a história do
ponto A ao ponto Z, é isso que faz com que o conflito comece a se desenrolar
(ou a se enrolar mais ainda).
É preciso
cuidar. Nem sempre as palavras acima são usadas como filtro. Palavra-filtro é
aquele que demonstra uma história contada, não mostrada, ao leitor. Por
exemplo:
“Credo!”, ela se arrepiou. Ele riu. Ela
demorou-se, contemplando-o. Ele tinha um sorriso lindo, cheio de vitalidade,
que não a deixava esquecer que a vida passa muito breve. Ele liberou espaço em
seu colo. Ela virou o rosto para observar
a serra e contemplar o dia que estava nascendo.
“Está
tarde”, disse.
Como ele não respondia nada, ela voltou o rosto
para olhá-lo. Foi surpreendida por uma face bem próxima a sua, e olhos grudados
nos seus lábios. Ele se aproximou, ela se deixou ficar. Uma sensação de
juventude, dos anos que não voltariam mais, tomou-lhe o coração acelerado e
fluiu pelas veias. Quando os lábios se tocaram, ela se viu mais uma vez menina,
ingênua, à espera do beijo do príncipe encantado.
“Não”, ela pediu. “Em público, não.”
(Perdida –
Andreia Evaristo)
No exemplo
acima, a serra em questão e o nascer do dia não mereciam ênfase, então, para
apressar esse detalhe, optei por contar em vez de mostrar. Há duas coisas que
são importantes ali: o tempo decorrido (ela ficou fora de casa por tanto tempo
que o dia estava nascendo) e o virar do rosto para o outro lado, para criar um
gancho para o rosto do garoto próximo ao dela, quando ela voltar o rosto à
posição normal.
Contudo, há
casos em que as palavras-filtro são usadas como ações, para cumprirem sua
função na cena.
Um dia, na saída do grupo de jovens, a
Eduarda foi conversar com o Pedro a sós. Ela tinha certeza de que esse seria o
dia em que ela conseguiria arrumar um esquema para nós. Eu os vi juntos, do outro lado da rua.
Vi como eles conversavam, que
ele a olhava nos olhos – como
toda pessoa educada faz quando conversa com alguém, certo? Eu vi quando ela falou alguma
coisa, ele respondeu olhando
firmemente nos olhos dela. Ela ficou vermelha, abaixou a cabeça e olhou
para os próprios pés. Ele levou o
dedo indicador até o queixo dela e puxou o rosto para cima, fazendo com que ela
o olhasse nos olhos novamente.
Eu já começava a ficar inquieta – conhecia o fluxograma do beijo de cabo a rabo
e sabia onde isso ia dar. Não queria acreditar no que estava vendo; na verdade,
queria poder negar a cena a qual eu assistia, queria poder contrariar todos os
meus instintos... mas algumas coisas nessa vida são inevitáveis, eu sei. Não
sei como funciona, não sei que poder é esse que o universo exerce sobre nós,
não sei se tudo são escolhas que fazemos e depois temos que arcar com as
consequências das nossas decisões. O que eu sei é que eu sabia o que ia
acontecer.
(What’s up – uma
história de amor pré-internética – Andreia Evaristo)
Todas as
vezes que a narradora Juliana usa o verbo ver no passado (Eu os vi juntos... Vi como eles conversavam... Eu vi quando ela falou alguma
coisa...) são filter-words. Foram
usadas de propósito, mas, ainda assim, são palavras-filtro: a narradora poderia
narrar diretamente a cena a qual assistia, sem precisar desse recurso. Mas
nessa cena específica, é importante colocá-la como expectadora da cena, porque
nela sua melhor amiga Eduarda está conversando com o garoto por quem Juliana é
apaixonada – e ela vai perceber que ele está a fim da sua amiga. Ainda assim,
não podemos negar que são filter-words.
Mas vejamos
os outros trechos destacados. “...ele a olhava nos olhos – como toda pessoa educada faz quando
conversa com alguém, certo?” Aqui, por mais que tenhamos o verbo olhar, não é usado como filtro. A
narradora não diz simplesmente que Pedro estava olhando para Eduarda, mas sim que
ele a encarava diretamente nos olhos – e quer negar a atração visível entre
eles, quando completa dizendo que toda pessoa educada olha nos olhos da outra
quando conversa. No outro exemplo, “Ela ficou vermelha, abaixou a cabeça e olhou
para os próprios pés.”, esse
verbo olhar também não é filtro: é
uma ação, demonstrando que Eduarda estava sem jeito, envergonhada. Quando Pedro
“...levou
o dedo indicador até o queixo dela e puxou o rosto para cima, fazendo com que
ela o olhasse nos olhos novamente”, temos uma ação de Pedro
tentando quebrar o gelo com Eduarda, obrigando-a a encará-lo, possivelmente
para beijá-la. Ou seja, mais uma vez, não é uma palavra-filtro.
- Trabalhe com
os sentidos (audição, visão, tato, olfato, paladar)
Sempre que
possível, procure inserir elementos de mais de um sentido sensorial em seu
texto. A maioria dos textos se preocupam, basicamente, com visão e audição.
Raramente vemos referências aos outros sentidos. Isso é natural, afinal,
vivenciamos o mundo muito mais pela visão e pela audição. Contudo, utilizar
referências aos outros sentidos pode ajudar a inserir ainda mais o leitor na
cena que você quer escrever.
“Catarina.”
Uma voz
grave chama minha atenção. Distraída, eu nem percebera quando o homem
de terno tinha se aproximado da mesa.
“Oi. Heitor?”
Quando meus
olhos encontram os seus, um arrepio
percorre minha pele. Ele esboça um sorriso e eu percebo o quanto sua pele bronzeada destaca o verde dos olhos.
“Aqui está o seu celular, são e salvo”,
brinca ele, tirando-me do transe.
“Ah, e aqui está o seu. Alguém te ligou, mas
eu... enfim...”
“Pode deixar, o número deve ter ficado
gravado na memória. Muito obrigado.”
Ele me estende a mão. Não posso recusá-la.
Quando minha pele toca a sua,
sinto minhas bochechas corarem.
“Obrigada a você.”
Conforme ele se afasta, eu não consigo
raciocinar. Seu terno alinhado, seus sapatos de couro que fazem um toc-toc quando ele caminha, sua gravata verde
escura, tudo nele é capaz de me distrair. Quando sua imagem desaparece na
esquina do corredor, balanço a cabeça para dissipar meus pensamentos, e volto
meus olhos ao jornal em busca do endereço.
(Sugar Baby –
Eva Sartorini)
No trecho
destacado, temos uma descrição sensorial de visão (olhar nos olhos, ver o
contraste entre a pele bronzeada e os olhos verdes), audição (o timbre da voz,
o barulho que os sapatos fazem) e tato (o arrepio, o calor nas bochechas, o
toque na pele). Apesar de nem todos os sentidos estarem presentes na cena, já é
bem melhor do que uma cena narrada apenas pela visão, ou apenas pela audição.
Sentindo um cheiro de ciúmes no ar, Charles
arrasta os braços para prender a namorada num abraço, com os dedos passeando por suas costas. Rebeca lança seus braços
ao redor do pescoço dele, desfrutando do contato,
sentindo seu perfume. É
quando ela percebe um corpo estranho
dormindo no tecido.
“Charles, o que é isso na sua gola?”
“Isso o que, mozinho?”
“Essa mancha de batom!” As lágrimas sobem
amargas aos olhos dela, numa velocidade muito grande. São meses de prática,
afinal.
Ele bufa, solta os braços dela. Esfrega os
dedos pelos cabelos. Depois, arremata:
“É por isso, Rebeca, que eu não gosto que
você use batom. É por isso que eu acabei de te pedir um lenço, e tirei todo
esse batom que você estava usando. Para evitar cenas como essa.”
“Tá maluco, Charles? Você tirou meu batom
antes de me abraçar.”
“Claro que não. Você está delirando.”
Rebeca puxa o lenço da mão dele:
“Olha
aqui, Charles. Olha aqui! Nem a cor do batom é a mesma.”
Os lábios impressos retorcidos no lenço são rosados. O beijo de meia boca na
gola é vermelho, vivo. Mesmo
com qualquer cor de fundo, nunca seriam do mesmo batom.
(Invadida –
Andreia Evaristo)
O trecho
acima trabalha com tato (dedos passeando
pelas costas, contato), visão (viu
algo estranho no tecido, rosado, vermelho) e olfato (perfume). Perceba que se o texto simplesmente contasse que Rebeca viu uma mancha de batom na gola da camisa de Charles, e que esse batom não era dela, o envolvimento do leitor com o texto seria totalmente outro.
Enfim, conhecer e usar essas três dicas em seu processo de escrita pode ajudar (e muito) se seu objetivo for manter o leitor agarradinho às páginas do seu livro.
E aí, você acrescentaria mais alguma dica? Deixe nos comentários.
Enfim, conhecer e usar essas três dicas em seu processo de escrita pode ajudar (e muito) se seu objetivo for manter o leitor agarradinho às páginas do seu livro.
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