quinta-feira, 1 de setembro de 2016

Como fazer o leitor grudar na sua história


  1. Não conte, mostre.


A regra de ouro quando vamos narrar um texto é nunca contar uma história, mas sim mostrá-la ao leitor. Quando o leitor acompanha, palavra após palavra, tudo o que acontece com o seu personagem, ele precisa passar pela experiência de vivenciar o que o personagem vivencia. Assim, você não deve contar algo ao leitor – a menos que queira apressar algum trecho. Para proporcionar tal vivência, é preciso mostrar.

Fazer isso não é tão difícil quanto parece. Imagine que sua história será retratada num filme. Quando você imagina seu personagem nervoso, à beira de ataque de nervos, que ações ele tem que podem demonstrar isso? Ele rói unhas, morde as cutículas nos cantinhos dos dedos? Ele bate a ponta do pé insistentemente no chão? Ele, de pernas cruzadas, insiste em balançar a perna que está por cima? Ele bufa, inspira fundo, engole em seco? Pense visualmente como você pode transmitir isso ao leitor.


Pense também que as características do seu personagem, seu passado, sua vida antes de a história começar, também são refletidas pelas ações que ele faz, pelas decisões que ele toma. Alguém que tenha sido picado por cobra ficaria fissurado em olhar para o chão caso precisasse se embrenhar pelo meio da mata – e só entraria depois de muito hesitar, depois de esgotar todas as possibilidades possíveis para evitar fazê-lo.

Se você quer caracterizar um cenário, ou usar um elemento vinculado (olha a arma de Tchekov aí), não precisa de um longo de trecho de descrição. Isso pode ser tedioso. Faça tal objeto aparecer em alguma cena antes de ser necessário, para não correr o risco de transformar a solução em deus ex-machina. Assim, você precisa criar uma cena em que seu personagem se relacione com tal objeto antes mesmo de ele ser necessário. Se seu personagem vai acabar matando a amante com um picador de gelo, ele precisa ser mostrado como um apreciador de uísque, por exemplo. Ou ela, já que ele pode usar como arma um objeto com o qual a amante tenha se relacionado. Não se esqueça de pensar na função da sua cena antes de escrevê-la.


Desembarco do elevador no meu andar. O prédio me é novidade, ainda não tem cheiro de lar, como meu antigo local de trabalho. Há uma frieza nos espaços, que se preenche com o toc-toc dos meus scarpins Louboutin batendo no porcelanato. Nudes, para não chamar a atenção, já que minha jaqueta vermelha já é chamativa por si só. Como toda mulher, sei que às vezes preciso do poder que o vermelho me traz. Vermelho, como os batons das pin-ups. Vermelho, como a maçã da Branca de Neve, ou a do pecado de Eva. Vermelho, como as unhas roídas da pobre menina na Caverna ontem à noite.
No fim do corredor, encontro Fernanda, minha secretária. Quando aceitei o trabalho na Lupus, depois da incorporação da minha antiga construtora, La Rouge, fiz questão de mantê-la comigo. Há coisas pelas quais vale a pena lutar.
“Bom dia, chefa. Preparada?” Ela sorri, e tenta me transmitir calma. Na maioria das vezes funciona, mas não hoje.
“Acho que sim.” Solto o ar da boca com força, enchendo as bochechas e fazendo um bico. Deixo sobre sua mesa uma caixa de acrílico com nove cupcakes. “Poderia guardar para mim até a hora da reunião?” Ela encara os bolinhos com olhos de criança travessa. “São para os arquitetos da minha equipe.” Ainda soa estranho, minha equipe – é como se as palavras não servissem em minha boca. “Um deles é seu, e o outro é meu, que ninguém aqui é de ferro, certo?”
Ela sorri e assente com um gesto de cabeça. Uma secretária que vivesse de dieta não serviria. Preciso de alguém que me acompanhe sem culpa nos doces, de vez em quando.
Minha sala nova tem os mesmos móveis da antiga sede da La Rouge. Eu planejei a decoração, e tenho um apreço especial por cada um daqueles elementos. Deixo minha bolsa no armário, olho a parede. Ajusto a posição de um dos quadros, que está levemente inclinado. Puxo a cadeira, sento-me junto à mesa. Ajeito a posição de uma maçã de cristal, com a folha virada para o lado esquerdo. Uma lascada na quina da mesa, do lado direito, implora pela atenção dos meus olhos. Corro os dedos pelo machucado, áspero. Bufo. Os carregadores deveriam ter tido mais cuidado. Devem ter deixado cair uma chave de fenda ali. Olho com mais cuidado o tamanho do rombo: uma chave de fenda, não; um martelo. Uma chave jamais faria um estrago daqueles.

(Em pele decordeiro – Andreia Evaristo)

Há uma frieza nos espaços, que se preenche com o toc-toc dos meus scarpins Louboutin batendo no porcelanato. Nudes, para não chamar a atenção, já que minha jaqueta vermelha já é chamativa por si só.Nesse trecho, há uma descrição de Louise – sua forma de se vestir para demonstrar poder, um poder feminino, já que ela é uma defensora do direito das mulheres.

Quando aceitei o trabalho na Lupus, depois da incorporação da minha antiga construtora, La Rouge, fiz questão de mantê-la comigo. Há coisas pelas quais vale a pena lutar. Aqui, há uma descrição da personagem Fernanda, a secretária, pela visão da protagonista Louise, e da relação estabelecida entre as duas.

Solto o ar da boca com força, enchendo as bochechas e fazendo um bico. Que tipo de sentimento a personagem está expressando com essa ação? O que mudaria na sensação do leitor se esse trecho fosse substituído por Definitivamente, estou nervosa.?

Uma secretária que vivesse de dieta não serviria. Preciso de alguém que me acompanhe sem culpa nos doces, de vez em quando. Louise é uma mulher em busca de parceria, não quer se sentir sozinha – e, diferente da maioria das mulheres, não está preocupada em correr atrás de um corpo esquálido de quem não come.

O último parágrafo desse trecho serve para caracterizar Louise como uma mulher paranoica em relação à organização, alguém com transtorno obsessivo compulsivo (TOC). Mas é mais do que isso: o fato de ela ser extremamente detalhista, observadora e analítica é um elemento vinculado, que vai se tornar essencial na solução de um dos mistérios da trama. A maçã de cristal é uma referência – das muitas que aparecem no texto – aos contos de fada, e vai ser arremessada contra a parede assim que Aurélio Lobo sair pela porta.


  1. Evite filter words (assistir, decidir, experimentar, imaginar, notar, olhar, ouvir, parecer, pensar, perceber, poder, saber, sentir, ser capaz de, ver...)


Palavras-filtro servem como um elemento de separação entre o leitor e o texto. Não é que elas não possam ser usadas: podem, mas é preciso certo cuidado. Quando o escritor abusa das filter words, ele acaba contando a história em vez de mostrá-la – e isso afasta o leitor, impede que o leitor seja inserido na história.

Coloque ação no seu texto. Entenda: seu personagem é o que ele faz – seja como ação, ou como reação. É muito comum que, no início do texto, seu personagem seja mais reativo e, com a evolução na sua jornada, ele se torne mais ativo. Ainda assim, vou repetir: seu personagem é o que faz. Ele não é o que pensa, o que sente, o que imagina, o percebe... Personagem é igual a ação. É isso que move a história do ponto A ao ponto Z, é isso que faz com que o conflito comece a se desenrolar (ou a se enrolar mais ainda).

É preciso cuidar. Nem sempre as palavras acima são usadas como filtro. Palavra-filtro é aquele que demonstra uma história contada, não mostrada, ao leitor. Por exemplo:

“Credo!”, ela se arrepiou. Ele riu. Ela demorou-se, contemplando-o. Ele tinha um sorriso lindo, cheio de vitalidade, que não a deixava esquecer que a vida passa muito breve. Ele liberou espaço em seu colo. Ela virou o rosto para observar a serra e contemplar o dia que estava nascendo.
“Está tarde”, disse.
Como ele não respondia nada, ela voltou o rosto para olhá-lo. Foi surpreendida por uma face bem próxima a sua, e olhos grudados nos seus lábios. Ele se aproximou, ela se deixou ficar. Uma sensação de juventude, dos anos que não voltariam mais, tomou-lhe o coração acelerado e fluiu pelas veias. Quando os lábios se tocaram, ela se viu mais uma vez menina, ingênua, à espera do beijo do príncipe encantado.
“Não”, ela pediu. “Em público, não.”

(Perdida – Andreia Evaristo)

No exemplo acima, a serra em questão e o nascer do dia não mereciam ênfase, então, para apressar esse detalhe, optei por contar em vez de mostrar. Há duas coisas que são importantes ali: o tempo decorrido (ela ficou fora de casa por tanto tempo que o dia estava nascendo) e o virar do rosto para o outro lado, para criar um gancho para o rosto do garoto próximo ao dela, quando ela voltar o rosto à posição normal.

Contudo, há casos em que as palavras-filtro são usadas como ações, para cumprirem sua função na cena.

Um dia, na saída do grupo de jovens, a Eduarda foi conversar com o Pedro a sós. Ela tinha certeza de que esse seria o dia em que ela conseguiria arrumar um esquema para nós. Eu os vi juntos, do outro lado da rua. Vi como eles conversavam, que ele a olhava nos olhos – como toda pessoa educada faz quando conversa com alguém, certo? Eu vi quando ela falou alguma coisa, ele respondeu olhando firmemente nos olhos dela. Ela ficou vermelha, abaixou a cabeça e olhou para os próprios pés. Ele levou o dedo indicador até o queixo dela e puxou o rosto para cima, fazendo com que ela o olhasse nos olhos novamente. Eu já começava a ficar inquieta – conhecia o fluxograma do beijo de cabo a rabo e sabia onde isso ia dar. Não queria acreditar no que estava vendo; na verdade, queria poder negar a cena a qual eu assistia, queria poder contrariar todos os meus instintos... mas algumas coisas nessa vida são inevitáveis, eu sei. Não sei como funciona, não sei que poder é esse que o universo exerce sobre nós, não sei se tudo são escolhas que fazemos e depois temos que arcar com as consequências das nossas decisões. O que eu sei é que eu sabia o que ia acontecer.

(What’s up – uma história de amor pré-internética – Andreia Evaristo)

Todas as vezes que a narradora Juliana usa o verbo ver no passado (Eu os vi juntos... Vi como eles conversavam... Eu vi quando ela falou alguma coisa...) são filter-words. Foram usadas de propósito, mas, ainda assim, são palavras-filtro: a narradora poderia narrar diretamente a cena a qual assistia, sem precisar desse recurso. Mas nessa cena específica, é importante colocá-la como expectadora da cena, porque nela sua melhor amiga Eduarda está conversando com o garoto por quem Juliana é apaixonada – e ela vai perceber que ele está a fim da sua amiga. Ainda assim, não podemos negar que são filter-words.

Mas vejamos os outros trechos destacados. “...ele a olhava nos olhos – como toda pessoa educada faz quando conversa com alguém, certo?” Aqui, por mais que tenhamos o verbo olhar, não é usado como filtro. A narradora não diz simplesmente que Pedro estava olhando para Eduarda, mas sim que ele a encarava diretamente nos olhos – e quer negar a atração visível entre eles, quando completa dizendo que toda pessoa educada olha nos olhos da outra quando conversa. No outro exemplo, “Ela ficou vermelha, abaixou a cabeça e olhou para os próprios pés.”, esse verbo olhar também não é filtro: é uma ação, demonstrando que Eduarda estava sem jeito, envergonhada. Quando Pedro “...levou o dedo indicador até o queixo dela e puxou o rosto para cima, fazendo com que ela o olhasse nos olhos novamente”, temos uma ação de Pedro tentando quebrar o gelo com Eduarda, obrigando-a a encará-lo, possivelmente para beijá-la. Ou seja, mais uma vez, não é uma palavra-filtro.


  1. Trabalhe com os sentidos (audição, visão, tato, olfato, paladar)


Sempre que possível, procure inserir elementos de mais de um sentido sensorial em seu texto. A maioria dos textos se preocupam, basicamente, com visão e audição. Raramente vemos referências aos outros sentidos. Isso é natural, afinal, vivenciamos o mundo muito mais pela visão e pela audição. Contudo, utilizar referências aos outros sentidos pode ajudar a inserir ainda mais o leitor na cena que você quer escrever.

“Catarina.”
Uma voz grave chama minha atenção. Distraída, eu nem percebera quando o homem de terno tinha se aproximado da mesa.
“Oi. Heitor?”
Quando meus olhos encontram os seus, um arrepio percorre minha pele. Ele esboça um sorriso e eu percebo o quanto sua pele bronzeada destaca o verde dos olhos.
“Aqui está o seu celular, são e salvo”, brinca ele, tirando-me do transe.
“Ah, e aqui está o seu. Alguém te ligou, mas eu... enfim...”
“Pode deixar, o número deve ter ficado gravado na memória. Muito obrigado.”
Ele me estende a mão. Não posso recusá-la. Quando minha pele toca a sua, sinto minhas bochechas corarem.
“Obrigada a você.”
Conforme ele se afasta, eu não consigo raciocinar. Seu terno alinhado, seus sapatos de couro que fazem um toc-toc quando ele caminha, sua gravata verde escura, tudo nele é capaz de me distrair. Quando sua imagem desaparece na esquina do corredor, balanço a cabeça para dissipar meus pensamentos, e volto meus olhos ao jornal em busca do endereço.

(Sugar Baby – Eva Sartorini)

No trecho destacado, temos uma descrição sensorial de visão (olhar nos olhos, ver o contraste entre a pele bronzeada e os olhos verdes), audição (o timbre da voz, o barulho que os sapatos fazem) e tato (o arrepio, o calor nas bochechas, o toque na pele). Apesar de nem todos os sentidos estarem presentes na cena, já é bem melhor do que uma cena narrada apenas pela visão, ou apenas pela audição.

Sentindo um cheiro de ciúmes no ar, Charles arrasta os braços para prender a namorada num abraço, com os dedos passeando por suas costas. Rebeca lança seus braços ao redor do pescoço dele, desfrutando do contato, sentindo seu perfume. É quando ela percebe um corpo estranho dormindo no tecido.
“Charles, o que é isso na sua gola?”
“Isso o que, mozinho?”
“Essa mancha de batom!” As lágrimas sobem amargas aos olhos dela, numa velocidade muito grande. São meses de prática, afinal.
Ele bufa, solta os braços dela. Esfrega os dedos pelos cabelos. Depois, arremata:
“É por isso, Rebeca, que eu não gosto que você use batom. É por isso que eu acabei de te pedir um lenço, e tirei todo esse batom que você estava usando. Para evitar cenas como essa.”
“Tá maluco, Charles? Você tirou meu batom antes de me abraçar.”
“Claro que não. Você está delirando.”
Rebeca puxa o lenço da mão dele:
Olha aqui, Charles. Olha aqui! Nem a cor do batom é a mesma.”
Os lábios impressos retorcidos no lenço são rosados. O beijo de meia boca na gola é vermelho, vivo. Mesmo com qualquer cor de fundo, nunca seriam do mesmo batom.

(Invadida – Andreia Evaristo)


O trecho acima trabalha com tato (dedos passeando pelas costas, contato), visão (viu algo estranho no tecido, rosado, vermelho) e olfato (perfume). Perceba que se o texto simplesmente contasse que Rebeca viu uma mancha de batom na gola da camisa de Charles, e que esse batom não era dela, o envolvimento do leitor com o texto seria totalmente outro.

Enfim, conhecer e usar essas três dicas em seu processo de escrita pode ajudar (e muito) se seu objetivo for manter o leitor agarradinho às páginas do seu livro.

E aí, você acrescentaria mais alguma dica? Deixe nos comentários.

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