sábado, 22 de agosto de 2015

Como transformar o leitor em um personagem

Dicas para aumentar o envolvimento do leitor com a sua história escrita

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Fonte: We Heart It

 1.     Não conte, mostre.


Eu me levanto, revoltada, e vou me sentar no sofá. Por um momento, me arrependo da discussão: alguém pode ter ouvido nossa conversa no outro apartamento.

Eu me levanto, jogo o guardanapo com força por cima do prato, e vou me sentar no sofá. Não sei que horas da noite são, mas eu não deveria estar discutindo com Hermes de madrugada. As paredes do condomínio têm ouvidos, não é seguro manter essa conversa desse jeito.

Percebe a diferença entre os dois trechos? Normalmente, um escritor menos experiente tende a contar como seu personagem se sente, contar o que ele viu/ouviu/sentiu. Conforme a experiência de escrita vai aumentando, o escritor começa a demonstrar com ações como o personagem estava se sentindo.

No trecho em amarelo, a ação de jogar o guardanapo com força demonstra a revolta da personagem. Já o trecho em azul amplia a visão que o leitor tem sobre como a personagem pensa, qual foi a sequência lógica que ela percorreu em sua mente para chegar à conclusão de que estava arrependida de discutir em voz alta com Hermes.

Existem situações num texto em que você pode contar algo em vez de mostrar? Com toda certeza. Há casos em que o escritor quer apenas contextualizar uma cena – assim, ele precisa narrar brevemente um fato anterior que possa ter relevância para o fato atual que ele pretende mostrar. Nesse caso, cabe a estratégia de contar o fato anterior e mostrar o fato atual.

Vamos fazer um exercício?

Uma família pobre entra numa doceria. Sentam-se pai, mãe e filhinha numa mesa a um canto do estabelecimento. O dinheiro está contado. Pedem uma fatia de bolo e uma coca-cola, os pais cantam parabéns para a menina. O pai está satisfeito mas ao se deparar comigo, sente-se envergonhado, por eu estar observando a cena. Por fim, demonstra ter certeza de que está fazendo tudo certo e sorri para mim.[1]

Transforme o texto acima em um texto que mostra o que acontece, em vez de contá-lo.


2.     Evite usar filterwords.[2]

Existem algumas palavras que distanciam o leitor da história. São como se fossem filtros entre o que o leitor lê e o que acontece na trama. Em inglês, essas palavras são chamadas de filter words – algo como palavras-filtro, ou palavras de filtragem, em livre tradução. Elas funcionam como uma barreira entre o leitor e a ação: em vez de o leitor ter contato com o que acontece, ele tem contato com a percepção do narrador em relação aos fatos – e, justamente por isso, há menos envolvimento.

São elas:
assistir, decidir, experimentar, imaginar, notar, olhar, ouvir, parecer, pensar, perceber, poder, saber, sentir, ser capaz de, ver...

Na verdade, a lista não limita as palavras que funcionam como filtro. É mais um guia para que você possa entender como essa filtragem acontece. O que determina se a palavra é um filtro ou não é o ponto-de-vista: quando você usa uma filter word, é como se o leitor estivesse vivenciando a história com os olhos (e ouvidos, e pele, e língua, e nariz) do narrador, não do seu próprio.

Com filter words      Eu vi o sol se levantando por entre as grades da janela.
Sem filter words       O sol se levantou por entre as grades da janela.

Com filter words      Maria se sentia triste. Imaginava que o mundo deveria ser um lugar diferente, com pessoas diferentes. Ela parecia estar com problemas.
Sem filter words       Maria estava triste. O mundo deveria ser um lugar diferente, com pessoas diferentes. Com certeza, ela estava com problemas.

Com filter words      Ele parecia furioso com seus olhos semicerrando e seus lábios se apertando numa linha fina.
Sem filter words       Seus olhos semicerraram. Seus lábios se apertaram numa linha fina. Era a fúria se alojando aos poucos.

Você a diferença? Você sente a diferença?

Há casos em que essas mesmas palavras são necessárias? Claro que sim. Mas é preciso sempre ter em mente a questão que diferencia o contar e o mostrar. Sempre que possível, opte por mostrar, por inserir o leitor dentro da história, vivenciando o que os personagens estão vivenciando.

Veja só:

Perguntei a ele quem era Vitória. Ele olhou para a esquerda, depois para baixo. Não conseguia me encarar. A culpa o corroía por dentro, ou talvez a ansiedade, o medo da minha reação.
“É uma colega do trabalho.”

Nesse trecho, o verbo olhar não é exatamente uma palavra-filtro, já que ele indica uma ação de desviar o olhar do seu inquisidor, como uma fuga, como alguém que está inventando uma desculpa. Para um leitor que conheça um pouco de linguagem corporal, a dica de que o personagem olhou para a esquerda significa que ele está mentindo, que ele está construindo uma imagem mental – se ele estivesse se lembrando de um fato, ele olharia para a direita.


3.     Trabalhe com os sentidos.

Umas das formas de inserir o leitor na sua história é trabalhar com os sentidos: olfato, tato, paladar, audição e visão. Comumente, o sentido mais utilizado na literatura é a visão, seguido da audição. Mas o texto pode ser muito mais rico, mais envolvente, se conseguir transpor para o papel as sensações do personagem.

Resolvi subir a escada e passar pelo ladrão, no teto. A cada degrau, um barulho agudo estralava sob meus pés – e eu sentia que qualquer passo poderia ser em falso, rumo a uma queda que não tardaria. Mas minha curiosidade era maior que meu medo. Quando minhas mãos tocaram o chão do sótão, a poeira aderiu aos meus dedos, mesclada às teias de aranha. Sabe-se lá quanto tempo esse espaço estava fechado! Sabe-se lá quando foi a última vez que esse chão viu uma vassoura! Levantei o olhar: o cheiro de mofo, misturado aos milhares de ácaros e grãos de poeira, me fez coçar o nariz. Os objetos envelhecidos dormiam na penunbra – apenas um estreito raio de sol entrava por uma fresta na cortina rasgada e carcomida.

O trecho acima não traz o paladar, porque não há comida na cena. Mas os demais sentidos foram devidamente explorados para fazer com que o leitor se sinta na cena, como se ele estivesse vivenciando aquela situação por ele mesmo, e não através do personagem.

Vamos fazer um exercício?

Uma mulher acorda num local desconhecido. É uma cabana de madeira, no meio de uma floresta, longe da cidade. Ela tem uma reação inesperada (pode ser boa ou ruim). Elabore uma cena dentro dessa trama, usando o máximo possível de elementos ligados aos sentidos.

4.      Fuja dos clichês

Segundo um artigo publicado no The New York Times[3], frases comumente usadas em textos – os chamados clichês (“ela é uma flor”, “um doce de menina”), são tratados pelo cérebro como palavras comuns, e não produzem o mesmo impacto que figuras de linguagem mais ricas. Metáforas sensoriais (envolvendo os cinco sentidos) ou sinestesia (mistura de dois ou mais sentidos na mesma expressão) fazem com que o cérebro do leitor ative outras áreas além daquela ligada à linguagem. Talvez por isso escrever para os sentidos seja muito mais envolvente que usar apenas o sentido da visão, por exemplo.

A felicidade é um gato.
Eu sei, caro leitor, que você gostaria mesmo que a felicidade fosse um cachorro, mas infelizmente não é. Se fosse um cão, as coisas seriam muito mais fáceis – você estalaria os dedos, assobiaria chamando, e a felicidade viria correndo em sua direção, abanando o rabinho. Mas como eu já disse, a felicidade não é um cachorro.
A felicidade é um bichinho difícil de controlar, exatamente como os gatos.” (Andreia Evaristo – Um gato chamado Felicidade)




[1] A última crônica, Fernando Sabino.
[2] Termo usado por Susan Dennard
[3] Artigo: A neurociência do seu cérebro na ficção

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