terça-feira, 31 de maio de 2016

Resposta

cronica escritora joinville amor do passado

O clima mudara: um friozinho gostoso se espalhava pela casa. O céu límpido completava o clima perfeito para a ocasião. Dias perfeitos são sempre assim, pensava ela, com frio e sol. Uma combinação criada por Deus, para reacender a chama da esperança nas lamparinas da alma humana.

Perfeita era a atmosfera para retirar das coisas adormecidas a poeira acumulada pelos anos. Abriu uma caixa, remexeu livros amarelados, cujas páginas já não se recordavam mais se eram uma ou várias. Em outra caixa, cartas antigas, de uma época que não havia tecnologia para aproximar mensagens e afastar pessoas. As cartas vinham de longe, mas os corações dos remetentes batiam lado a lado. Na terceira caixa, foi onde se demorou mais.

Escondidas em manuscritos rebuscados, as letras traziam versos escritos à sombra. Nunca conheceram o vento, que os poderia ter levado a longas distâncias. Curiosos, os olhos vasculhavam em busca de preciosidades deixadas para trás, abandonadas e escondidas por alguém que não era mais ela.

segunda-feira, 30 de maio de 2016

A arma de Tchekov e deus ex-machina

dicas para escritores como escrever um livro

Elemento livre, elemento vinculado e soluções caídas de paraquedas na literatura


Anton Tchekov foi um grande escritor russo, principalmente contista e dramaturgo, que até hoje é reconhecido por seu estilo conciso e objetivo. Além de dos textos literários, Tchekov deixou alguns escritos com dicas para outros escritores. Hoje, especificamente, vamos falar da Arma de Tchekov (elemento vinculado), mas também de elemento livre e deus ex-machina.

“Se você diz no primeiro ato que um rifle está pendurado na parede, no segundo ou terceiro atos ele deve absolutamente ser disparado. Se não irá ser usado, não deveria estar lá.” (Anton Tchekov)

Isso nos leva a definir aqui dois tipos de elementos que vão aparecer num texto narrativo: o elemento livre e o elemento vinculado.

domingo, 29 de maio de 2016

Garota sem nome

cronica menina adolescente

* Para Roberta de Azevedo

Quem é você, garota sem nome, que se senta no chão do quarto, com os pés descalços e a alma desnuda, sonhando acordada? Quem é você, com tantas dúvidas e quase nenhuma certeza? Para de observar o mundo pela tela do celular e vem sentir a brisa no rosto, o cheiro da terra que a chuva molha. Vem para fora, conhecer a vida sem resolução HD.

Põe os pés no chão. Esconde as dúvidas na gaveta de calcinhas, e saia em busca das certezas. Se você as encontrará? Não faço ideia! Mas o brilhante da vida está na procura, na caça ao tesouro, nas pegadas que deixamos pelo caminho.

sexta-feira, 27 de maio de 2016

Rosas, uni-vos!

cronica estupro coletivo feminista escritora joinvilense

A vida é difícil para a flor que nasce sem pistilo. Tão mais simples ser antúrio, ser copo-de-leite. Tão difícil ser rosa frágil e à mercê da desumanidade que nos cerca.

Números me dizem mais do que eu quero ouvir. Uma a cada cinco mulheres já sofreu (ou vai sofrer) abuso em sua vida. Todas elas são filhas, irmãs, amigas – algumas, mães. Vítimas de uma cultura que culpa a vítima em vez de voltar os olhos para a ferida que sangra. E ela sangra, todos os dias, uma vez a cada quatro minutos.

quinta-feira, 26 de maio de 2016

Aniversário no Facebook


Já havia um bom tempo que ele tinha desabilitado do Facebook a exibição de sua data de aniversário. Não é que ele não comemorasse a data, pelo contrário. Mas entendia que, para aqueles a quem realmente importava, a data nunca era esquecida. Quanto aos outros, a vida privada não era matéria de exposição pública e indiscriminada. Não era do tipo que busca participação num reality show.

Todos os dias, quando acessava seu perfil, se deparava indignado com a mensagem que dizia João Carlos Rocha e mais 8 amigos estão de aniversário hoje. Mostre a eles que você se lembrou. Ele bufava e pensava sozinho “Mas eu, eu mesmo, não me lembrei de nada. Foi o Facebook que me lembrou, oras! Daqueles que eu me lembro, por conta própria, eu mesmo trato de parabenizá-los, com o meio de comunicação que me for mais conveniente.”

terça-feira, 24 de maio de 2016

Como escrever crônica



Confesso que estava relutante se deveria ou não fazer este post. Ainda mais se formos considerar que, em literatura, não há regras fixas para quase nada. Assim, antes de compartilhar minha experiência com você, vamos acertar uma coisa: essa é a forma que funciona para mim, não significa que vá funcionar para todo mundo. Assim, sinta-se livre para compartilhar comigo, nos comentários, suas dicas e sugestões, certo?

Uma amiga, professora de Língua Portuguesa do Ensino Fundamental, queria trabalhar crônica com seus alunos, tendo em vista que estamos em tempos de Olimpíada de Língua Portuguesa - OLP. Como cronista do jornal A Notícia, montei um pequeno roteiro de como eu costumo produzir minhas crônicas - passo-a-passo. Vem comigo:

segunda-feira, 23 de maio de 2016

Uma crônica nada leve


Eu queria escrever um texto leve. Queria falar dos motoristas que passam cantando dentro de seus carros, batucando no volante (como se o vidro ao redor os protegesse da condenação alheia, dos olhares maldosos prontos a praticarem bullying) e do quanto eles parecem felizes. Mas a suicida não deixa.

Ela está lá, em cima do prédio, com os pés descalços fincados na beirada da cobertura. Como Cristo, no alto da montanha, após penar quarenta dias no deserto, com o diabo sussurrando-lhe aos ouvidos tentações irrecusáveis, de um mundo inteiro ao seu dispor – literalmente a seus pés. Ela também penou, mas foram muito mais que quarenta dias de tormenta. E também está com o mundo a seus pés – não da mesma forma, claro. E o diabo – ah, o diabo! – continua sua eterna saga de propor pactos de alma e sangue.

quinta-feira, 19 de maio de 2016

Sobre a rocha


Dia desses, sentada com o marido ao lado, assistíamos a um filme, naquela cumplicidade de sofá que só os casais de longa data podem desfrutar. Na tela, uma cena banal, de uma história banal: alguém bate à porta, e lá de dentro uma senhora pergunta “Quem é?” Em minha mente, a cena de um seriado americano pisca, sonora e a cores: o filho chega em casa e coloca a chave na fechadura. De dentro do quarto, a mãe grita: “Quem é? É um estuprador?” – como se um estuprador fosse mesmo avisar de sua presença na porta da casa de alguém. É uma cena que se repete várias vezes no mesmo episódio, esse mesmo episódio a que assisti infinitas vezes ao lado do meu marido. Nem tenho tempo de comentar uma mísera palavra e meu marido me sai com a deixa: “É um estuprador?” Caímos na risada.