segunda-feira, 23 de maio de 2016

Uma crônica nada leve


Eu queria escrever um texto leve. Queria falar dos motoristas que passam cantando dentro de seus carros, batucando no volante (como se o vidro ao redor os protegesse da condenação alheia, dos olhares maldosos prontos a praticarem bullying) e do quanto eles parecem felizes. Mas a suicida não deixa.

Ela está lá, em cima do prédio, com os pés descalços fincados na beirada da cobertura. Como Cristo, no alto da montanha, após penar quarenta dias no deserto, com o diabo sussurrando-lhe aos ouvidos tentações irrecusáveis, de um mundo inteiro ao seu dispor – literalmente a seus pés. Ela também penou, mas foram muito mais que quarenta dias de tormenta. E também está com o mundo a seus pés – não da mesma forma, claro. E o diabo – ah, o diabo! – continua sua eterna saga de propor pactos de alma e sangue.

Lá de cima, todos parecem tão pequenos. Ele se sentia assim, tão superior a ela, tão grandioso, e ela tão desprezível quanto uma formiga que poderia ser esmagada com um dedo, sem muita pressão, inclusive. Ela chegou ao fundo do buraco que cavou para si, mas seria de alto que enterraria todos os sonhos não realizados.

Decido deixá-la de lado. Crônicas deveriam ser fluidas, leves – essas de jornal, pelo menos. Pessoas querem um pouco de entretenimento, uma pitada de reflexão e, por que não, um temperinho de humor. Nem sempre os leitores querem angústia, sofrimento, depressão. Eu queria escrever um texto leve, mas esse clima frio não me deixa – e a suicida também não.

Ela buscou ajuda. Confessou-se com um padre, colocou sua aflição boca afora no confessionário. Mas em vez de uma mão quente de conforto, recebeu uma penitência para expurgar seus pecados. Contra a vida. Essa mesma vida que ela amaldiçoava escondida de Deus. Telefonou para os filhos, mas eles já tinham suas vidas e seus próprios problemas. O mundo não podia parar para que ela apertasse os parafusos que estavam frouxos.

Escreveu uma carta de despedida. Sentia-se covarde por desistir, sabia que seria julgada. Achou que a carta era uma bobagem – afinal, quem quer se matar, faz logo, não fica deitando drama em letras no papel. Nem trocou de roupa: subiu todos os andares e subiu no parapeito.

Eu ainda queria uma crônica leve. Mas a suicida tem coragem demais para desistir do seu intento. E ela precisa de mim.


(Andreia Evaristo)
Crônica publicada no jornal A Notícia, sábado, 21 de maio de 2016.

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