sexta-feira, 27 de maio de 2016

Rosas, uni-vos!

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A vida é difícil para a flor que nasce sem pistilo. Tão mais simples ser antúrio, ser copo-de-leite. Tão difícil ser rosa frágil e à mercê da desumanidade que nos cerca.

Números me dizem mais do que eu quero ouvir. Uma a cada cinco mulheres já sofreu (ou vai sofrer) abuso em sua vida. Todas elas são filhas, irmãs, amigas – algumas, mães. Vítimas de uma cultura que culpa a vítima em vez de voltar os olhos para a ferida que sangra. E ela sangra, todos os dias, uma vez a cada quatro minutos.

Se ela estava sozinha pela rua, estava procurando encrenca. Se bebeu, pediu. Qualquer mísero elemento é suficiente para tirar a carga dos ombros do abusador e jogá-la sobre a abusada, desmoronando qualquer resquício de fé na humanidade e esmagando qualquer coluna que ainda pudesse, mesmo que frágil, estar sustentando tudo o que restou depois que a cena acabou.

Cenas de crime são cenas de crime. Não importa o quanto alguém tente florear, perfumar as dores, disfarçar o odor podre de violência: crime é crime. Não existem meios pecados. Não quero saber quem começou.

A capa da revista me diz que as meninas sofrem seu primeiro assédio aos nove anos, enquanto o funk na rádio incita os moleques a caírem de amores pelas novinhas. Amores? Antes fosse! São predadores, à espreita da presa desatenta, perfeita para cair em suas garras. Assédio contra meninas é ruim, mas assédio é assédio – e é sempre ruim, não importa que idade a gente tenha.

Mas a pior notícia vem pela força invisível da internet, sob o ponto de vista do próprio abusador. Trinta homens contra uma garota. Bêbada, eles disseram. Chapada, eles afirmaram. Amassada pelos trinta, para usar os termos deles mesmos – mesmo que estivesse inconsciente, sem saber o que acontecia, sem poder dizer sim ou não a qualquer movimentação ao seu redor. E foi motivo de chacota, de deboche, de escárnio – porque a culpa é dela, afinal. Ela estava lá, à disposição.

Ela era rosa, frágil. Eles, antúrios com pistilos. A vida é difícil para as flores que nascem sem pistilo, como se elas tivessem culpa disso. Não quero a síndrome de castração freudiana. Quero força para as rosas, essas que são despetaladas todos os dias. Quero mais espinhos de defesa. Quero união de rosas num jardim em que pistilos não sejam empurrados à força onde não sejam bem-vindos.

(Andreia Evaristo)
Crônica de sábado (que saiu hoje na versão online), 28/05/16, no jornal A Notícia.

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