sexta-feira, 31 de março de 2017

Gabriela nublada



Gabriela entrou em minha sala cedinho. Nublada – a menina, não a manhã. Com os lábios finos apertados numa linha estreitíssima, perguntou-me se podia sentar. Ao meu consentimento, sentou-se, juntou as mãos como quem queria rezar, enfiando-as entre os joelhos. Primeiro, contou-me que estava frequentando a psicóloga, como eu havia sugerido. Depois, desviando os olhos dos meus, confessou que, embora a terapia estivesse ajudando, ela não estava bem. Era como se sua alma estivesse sempre cinza, as ações sempre realizadas em modo automático. “Eu me sinto um robô.”

Lembrei-me do homem de lata de O mágico de Oz, que se juntou à Dorothy na jornada, em busca do coração que lhe faltava. Talvez Gabriela não saiba, talvez desconheça o personagem da literatura e do cinema, mas ela não é um robô, é uma garota de lata. A diferença é que, o que falta ao homem de lata, sobra à menina nublada.

Há coração demais na tempestade em seus olhos, quando ela me diz que perdeu o pai para o câncer. Há coração demais naquele corpo que, com angústia reprimida, ainda sente as dores da mão pesada do homem falecido, que lhe castigava a carne quando algo dava errado. Há coração demais na ventania ressentida da casa vazia de mãe, que trabalha do nascer ao pôr-do-sol, sem poder se sentar com a filha e escutar-lhe as mazelas do dia a dia.

Pela janela, percebo a sombra que se forma. As nuvens estão cobrindo os poucos raios de sol daquele dia. Talvez seja a natureza, compadecida e solidária à menina cinza à minha frente. Gabriela choveu em minha sala. Gabriela desaguou mágoas, lembranças, monstros devoradores de entranhas. Saiu, espero eu, um pouco mais leve que entrou.

Quantas vezes, em nossa curta existência, nós também não nublamos, por dentro ou por fora? Quantas tempestades carregamos dentro d’alma, quantos pingos de chuva se agarram a nossos glóbulos oculares, com medo da queda suicida? Toda lágrima que cai é uma dor que morre no vazio.


No fim do dia, o céu está mais cinza que Gabriela quando transpassou o batente de minha porta. O céu cor de cimento descia por trás dos prédios, por trás dos verdes morros que circulam a cidade. Na rádio, o locutor diz que, em Porto Alegre, depois da tempestade, o pôr-do-sol tingiu os céus num espetáculo de luzes. Espera, Gabriela! Deixa chover tudo o que precisa ser chovido e espera pelo espetáculo – ele virá, eu sei que virá.

(Andreia Evaristo)
Crônica publicada em 25 de março de 2017, no jornal A Notícia.