terça-feira, 6 de setembro de 2016

Sobre a escrita de diários



Escrever sempre foi um método eficaz de lidar com monstros. É por isso que a humanidade vem escrevendo diários, desde que a escrita nos permitiu deixar a pré-história para trás. Ou talvez até antes da invenção da escrita: vale lembrar a arte rupestre adornando cavernas com imagens que, justo por serem grandes medos dos nossos ancestrais, eram também grandes objetivos a serem vencidos.


Entre cartas amarelas e fotos antigas, guardadas numa caixa de sapatos, ela encontrou um antigo diário da adolescência. Pegou o caderninho com dedos ansiosos, curiosos até. Lembrava quando decidira colocar sua vida em tinta no papel: quem sabe, no futuro, quando fosse famosa, alguém encontraria aquele velho diário e poderia resgatar seus pensamentos e memórias.

Seus olhos fugiam do papel, enquanto ela mantinha o livreto fechado entre as mãos. Ela sabia o que encontraria ali, afinal, era a vida que tinha vivido. Lembrava as aflições típicas da adolescência, de todos aqueles sentimentos remexendo-se dentro dela como um furacão. Recordava as catástrofes que a levaram ao fundo do precipício, com a alma lacerada e o corpo dolorido. Doía mais a alma, tinha certeza. O coração acelerou, a respiração ficou mais ofegante. A cada lembrança que surgia na tela da memória, um sentimento pingava-lhe por dentro, preenchendo-a. A pele se arrepiava, um frio soprava-lhe a nuca, a coriza insistia em escorrer.

Para quê? Depois de tantos pesadelos enfrentados, ela não precisava abrir aquele diário e enfrentar novamente os dragões do passado, aqueles que queimavam com sua língua de fogo e a lança afiada na ponta da cauda. Para que serviria reler aqueles momentos, a ingenuidade que a levara à ruína, ao desmoronar interno que os anos demoraram tanto para limpar os escombros e reconstruir a partir das cinzas? Talvez os diários sirvam como terapia, como catarse. A gente coloca no papel aquilo que não quer engolir, aquilo que nos incomoda no nó da garganta, aquilo que precisamos vomitar para não apodrecer por dentro.

Pegou o diário, levou-o ao quintal. Riscou um fósforo e, em meio a línguas que ardiam laranjadas como o pôr-do-sol, viu o fogo consumir tudo aquilo de que não precisava mais.

(Andreia Evaristo)
Crônica publicada no jornal A Notícia, em Joinville, em 13 de fevereiro de 2016.

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