segunda-feira, 19 de setembro de 2016

Por conta própria

Foto do facebook de Natan Pereira (edições: Qualquer Sentido)

Ninguém esperava. O dia estava lindo, com céu azul, limpinho, coisa quase rara na cidade da chuva. Um prenúncio do verão que voltaria, porque ele sempre volta. De mansinho, sem fazer alarde, a água foi subindo, subindo, subindo. Ficou na bordinha da margem do rio, encarando atenta a movimentação da cidade que fervilha em horário de trabalho. Decidiu transbordar e foi, aos poucos, bem lentamente, tomando os espaços, fluida, preenchendo tudo, como só a água é capaz de fazer.



Vinha pelos cantos da rua, junto à sarjeta, como uma criança a caminhar por cima da linha do meio-fio, meio desengonçada, quase se desequilibrando. Era um fio de água, que engrossou o caldo e, sem que ninguém se desse conta, tornou-se um rio fora do leito.

O primeiro a perceber a invasão da água foi um menino. Ela, a água, esperava que ele lançasse mão de um jornal e, às pressas, dobrasse um barquinho, que ela carregaria, com gosto, para longe dele, enquanto ele riria, correndo por cima da calçada, acompanhando o trajeto. Mas meninos não são mais assim. Ele correu para dentro de casa e voltou, chinelo de dedo nos pés e celular com câmera nas mãos. Fotografou a água e postou nas redes sociais: #mare (assim mesmo, sem acento, porque os meninos de hoje em dia entendem muito de hashtags, mas pouco de ortografia).

A maré subiu, sem chuva que a transbordasse. Subiu por conta própria; por conta própria, transbordou-se. Por conta própria, obrigou a cidade a desviar seu caminho, fez com que meninos e adultos parassem um instante para observar a força da natureza. Por conta própria, levantou questionamentos sobre a fraqueza humana e sua insignificância neste mundo. Como poderia um ciclone no sul do estado provocar tamanha mudança no movimento das águas do mar na região norte?

Como a água, problemas surgem por conta própria. Por conta própria, eles nos desviam de nossos caminhos e tudo o que vemos pela frente é a água que sobe, vazando as margens do rio, invadindo nossos espaços sem que quase nada possamos fazer a respeito. Mas, com a água que sobe, precisamos aprender: por conta própria, ela volta a baixar. Por conta própria, o rio refaz seu trajeto a seu leito usual. Por conta própria, a vida volta ao normal e as pessoas voltam às suas rotinas, à sua correria, aos olhos fechados para as preciosidades do mundo. Basta, apenas, dar tempo ao tempo.


(Andreia Evaristo)
Crônica publicada no jornal A Notícia, em 17 de setembro de 2016.

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