domingo, 5 de junho de 2016

Eles são criados para o mundo

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Foto: Niki Boon
Tudo começa com um susto. É sempre assim. Há um serzinho novo sendo gerado, e a gente se pergunta, por um breve instante, como foi que isso aconteceu. Pergunta retórica, todo mundo sabe como essas coisas acontecem. Então, você aceita. Depois, desfruta. É necessário gestar, esperar a formação para que ele (ou ela) dê as caras ao mundo.

Quando ele nasce, é pequenino, não fala, não anda. Mas a gente já imagina um roteiro perfeito, com cenas bem definidas, objetivos claros e final feliz. Sempre final feliz. A vida seria um fardo pesado demais sem os finais felizes.

Você educa, transmite valores. E ele cresce, aprende, começa a ter voz, a ter vez, a ter vontades e desvontades. Começa a querer decidir por conta própria. E você sente saudade de quando ele era menor, de quando era menos intransigente, de quando ele pensava com ideias aprendidas e obedecia mais – sem conflitos. Tudo mais simples, mais tranquilo. Mas a vida com aqueles que criamos nunca é um passeio de charrete pela província: é, antes, uma volta dupla na montanha-russa, com subidas, descidas e loopings que parecem não ter fim.

E chega o fatídico momento em que a gente percebe que não há mais volta: ele bate as asas. Nunca se esqueça: eles são criados para o mundo. Mesmo que você não concorde com suas decisões, quando ele decide deliberadamente ignorar o seu conselho, quando ele age por pura teimosia em criar um novo caminho para um destino já conhecido, é preciso respeito – é assim que ele cresce, assume uma personalidade e amadurece.

Se ele vai quebrar a cara? Lógico que sim. Se as coisas, uma hora, vão desmoronar sobre sua cabeça, justo por ele não ter tido a capacidade de pedir a sua ajuda? Óbvio! Ainda assim, deixe-o livre. Acredite no enredo.

Eu sei que você tinha um roteiro, mas ele vai insistir em desmembrar capítulos, em subverter regras, em ignorar etapas. Ainda assim, confie – histórias magníficas são escritas apenas confiando na própria intuição. Você lhe deu todas as ferramentas, confie que fez um bom trabalho.

De filhos, eu não entendo nada. Mas é assim com os personagens das minhas histórias. Uma hora, eles ganham vida – e eu, nenhum poder consigo exercer sobre eles depois disso. Então ganham o mundo: só me resta assistir, esperar um bom espetáculo e reservar palmas (ou lágrimas) para o grand finale.

(Andreia Evaristo)
Crônica publicada em 04 de junho de 2016, no jornal A Notícia.

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