segunda-feira, 27 de junho de 2016

Recursos estilísticos - para prosa e verso (parte 2)


Você já viu por aqui a primeira parte com alguns recursos de estilo para a produção dos seus textos, sejam eles romances, contos, crônicas, poemas, novelas ou quaisquer outros gêneros. Hoje vamos dar sequência a eles.


1.       Ambiguidade


De um modo geral, a ambiguidade num texto é um problema, certo? Você planeja dizer uma coisa, mas acaba dizendo outra – ou pior, a forma como você constrói suas frases não dão ao leitor uma clara certeza sobre o que você queria ter dito. Veja:

Durante o jogo, Lúcio deu várias caneladas em Guilherme. Depois entrou o Pedro no jogo e ele levou vários empurrões e pontapés.

(Gramática reflexiva – Cereja & Magalhães)

Em cenas de ação (ação aqui entendida como o ato de se movimentar, mas vale o mesmo para ação com confrontos corporais, lutas e afins), com mais de um personagem, às vezes é difícil não cometer algum deslize na questão da ambiguidade. Na frase dada como exemplo, temos três personagens: Lúcio, Guilherme e Pedro. Lúcio agride Guilherme na primeira frase. Depois da entrada de Pedro em cena, quem é que leva os vários empurrões e pontapés: o próprio Pedro, Lúcio ou Guilherme? Da forma como o trecho foi escrito, não é possível afirmar com certeza.

Como poderíamos, então, modificar a cena?

Imaginemos que Pedro agrediu Lúcio:

Durante o jogo, Lúcio deu várias caneladas em Guilherme. Depois que Pedro entrou no jogo, Guilherme se sentiu vingado: foi a vez de Lúcio receber vários empurrões e pontapés, já que Pedro não deixou barato.

Note: Não tenha medo de repetir os nomes em cenas com mais de dois personagens. Normalmente, essa repetição incomoda ao escritor, mas para o leitor ela é transparente, quase não é notada (dica: evite colocar os nomes repetidos muito próximos na mesma frase).

Contudo, já pensou que é possível utilizar a ambiguidade a seu favor? Vejamos a seguinte crônica:

– Assim?
– É. Assim.
– Mais depressa?
– Não. Assim está bem. Um pouco mais para...
– Assim?
– Não, espere.
– Você disse que...
– Para o lado. Para o lado!
– Querido...
– Estava bem mas você...
– Eu sei. Vamos recomeçar. Diga quando estiver bem.
– Estava perfeito e você...
– Desculpe.
– Você se descontrolou e perdeu o...
– Eu já pedi desculpa!
– Está bem. Vamos tentar outra vez. Agora.
– Assim?
– Quase. Está quase!
– Me diga como você quer. Oh, querido...
– Um pouco mais para baixo.
– Sim.
– Agora para o lado. Rápido!
– Amor, eu...
– Para cima! Um pouquinho...
– Assim?
– Aí! Aí!
– Está bom?
– Sim. Oh, sim. Oh yes, sim.
– Pronto.
– Não. Continue.
– Puxa, mas você...
– Olhaí. Agora você...
– Deixa ver...
– Não, não. Mais para cima.
– Aqui?
– Mais. Agora para o lado.
– Assim?
– Para a esquerda. O lado esquerdo!
– Aqui?
– Isso! Agora coça.

(Conto Erótico nº1 – Em: O rei do rock Luis Fernando Veríssimo)

Nesse texto de Luis Fernando Veríssimo, a ambiguidade é usada de propósito para criar uma expectativa no leitor, que se frustra ao fim do texto (lembre-se de que quebrar expectativas é uma das formas de gerar humor), quando descobre do que se trata. Note que até mesmo o título é usado para gerar ambiguidade, levando o leitor a crer que se trata de outra coisa.

2.       Hipérbole


É uma figura de linguagem utilizada para expressar uma ideia em exagero. Pode servir para representar a personalidade do seu personagem – imagine um personagem que leva as coisas muito a sério, e a fala com hipérboles pode ajudar a construir essa faceta; ou imagine um personagem que mania de aumentar a gravidade das coisas que acontecem com ele, para fazer drama, porque aprendeu muito cedo que as pessoas tratam bem aqueles de quem elas sentem pena.

Ali estava eu, aflita, dentro de um dos reservados do banheiro das meninas, com as calças no joelho e o celular na mão. Tinha acontecido uma tragédia. Eu já tinha mandado um milhão e duzentas mil mensagens no whatsapp pra minha melhor amiga, mas nem sinal dela. Claro, era aula de Matemática. Se dona Terezinha pegasse a coitada com o celular na mão, era uma vez um A-phone.

(Eita! Deu treta – Andreia Evaristo)

Ema, a protagonista de Eita! Deu treta é uma menina que adora exagerar nos dramas. Sua fala, quando ela está como narradora do livro, ou mesmo quando conversa com outros personagens, demonstra isso através das hipérboles que ela usa.

Amor da minha vida
Daqui até a eternidade
Nossos destinos foram traçados
Na maternidade

Paixão cruel, desenfreada
Te trago mil rosas roubadas
Pra desculpar minhas mentiras
Minhas mancadas

Exagerado
Jogado aos teus pés
Eu sou mesmo exagerado
Adoro um amor inventado

(Exagerado – Cazuza)

Na poesia, a hipérbole também é um recurso precioso. Quando falamos de amor, de dor, de perda – enfim, dos sentimentos profundos da dimensão humana – precisamos entender que tudo parece aumentado quando somos nós que padecemos de tais sentimentos. Ninguém ama devagar, ou sofre de jeito fraquinho.

3.       Eufemismo
 

A palavra eufemismo significa falar como uma fêmea. É a figura de linguagem que consiste em suavizar expressões, em pegar leve na hora de lidar com situações delicadas ou brutas no seu texto. Usar eufemismo em algumas situações pode deixar seu texto mais poético, ou mais cômico, dependendo da sua intenção.



Na tirinha de Peanuts (Schulz), Charlie Brown, para evitar ter de dizer à Lucy o que Paty Pimentinha disse a seu respeito, usa um eufemismo (nesse caso, totalmente distorcido) e é justo isso que causa o efeito cômico da história.

A mão que bateu a porta quando se foi apertava-lhe o peito. Dura e fria como a cerâmica do chão da cozinha, onde ela se sentou e chorou até que a fonte estivesse seca. O coração tentava continuar a bater dentro daqueles dedos que o seguravam, mas faltava espaço. Então, batia mais devagar, mais leve, mais escasso, e a vida perdia as forças de seguir em frente. Sem o pulsar do sangue que a empurrasse adiante, era mais cômodo parar e ficar.

(Nublada – Andreia Evaristo)

No trecho acima, o fato de ter sido abandonada é descrito com poesia, para não dizer com letras nuas e cruas o quanto a personagem estava deprimida, à beira de um colapso. Perceba: é um eufemismo, mas não deixa de ser uma metáfora, também. Aliás, não por acaso, a metáfora é considerada a mãe de todas as outras figuras de linguagem.

 4.       Ironia


Ironia é dizer o oposto do que se pretende. Sabe quando a mãe pega o boletim do filho, recheado de notas baixas, e solta um sonoro “Bonito, hein?” – isso é ironia.

Droga! Por que, meu Deus, a professora tinha mandado a representante da sala? Não era que eu tivesse algo contra ela nem nada, apenas não tínhamos nenhuma intimidade. Como é que eu poderia contar a ela o que estava acontecendo?
“Aqui”, gritei, detrás da porta do último box.
“A professora tá te chamando.”
Claro. Por que outro motivo ela teria mandado você aqui?
“Não posso sair.”
“Por quê?”
Ai, Deus. Não podia contar à Gabrielly o que estava acontecendo. Eu não sabia se ela saberia guardar segredo. Tentei parecer calma.
“Gabrielly, você pode chamar a Alícia pra mim?”
Silêncio. O que estaria passando na cabeça dela?
“Pra quê?”
Como pra quê? Pra limpar a minha bunda, decerto. Custa às pessoas ajudarem umas às outras sem um milhão de perguntas?
“Não posso falar. Só preciso que ela venha aqui. Será que dá?”
“Peraí.”

(Eita! Deu treta – Andreia Evaristo)

No trecho acima, a narradora-personagem Ema está presa num banheiro, apavorada, porque está com um problema que não quer contar a ninguém. Ela não pode sair do box, mas quer ajuda para resolver seu problema. A ironia fica apenas na narração, porque ela não é mal educada com os outros alunos da escola – mas o recurso serve como um alívio cômico na tensão gerada pela cena.

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