segunda-feira, 6 de junho de 2016

Como NÃO escrever diálogos

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Como você já viu aqui, é através dos diálogos que seu personagem ganha vida. O personagem pode até representar uma ideia na cabeça do leitor, mas ele só está vivo quando ele abre a boca e fala. Assim, vamos relembrar – um bom diálogo (assim como uma boa cena) tem basicamente três funções: caracterizar o personagem, situar o personagem ou levar a história para frente. Tendo isso em mente, entenda que ainda assim, alguns diálogos funcionam melhor que outros.

Antes que eu seja massacrada confrontada, tenha em mente que: a) Essas são dicas, ou seja, são uma forma de fazer, não uma fórmula. Seu texto é seu, e só você pode dizer o que funciona para você ou não; b) Só pode quebrar regras quem as conhece. Então, enquanto escritor, estude, estude, estude - se achar que não serve para você, subverta, descarte, aprimore; c) Mais dicas são bem-vindas. É para isso que servem o espaço de comentários lá embaixo.


O que evitar:

1.                 Monólogo a dois

Você provavelmente já se deparou com algum livro onde dois (ou mais) personagens que conversavam entre si e concordavam em tudo. Isso é péssimo. Uma boa história se dá no conflito: é no conflito que os personagens são levados às últimas consequências, que eles mostram quem eles são de verdade.

“Acho que, se as coisas aconteceram desse jeito com ela, foi porque ela provocou”, disse Joana.
“Também acho. Se fosse uma menina direita, não estaria num baile funk. Estaria em casa, com a família”, concordei.
“Exato. Quem quer o respeito, deve se dar ao respeito.”
“Muito fácil falar em estupro, agora. Só porque o vídeo caiu na internet.”
“Estupro? Que estupro, que nada. Ela foi procurar os caras porque quis.”

No exemplo acima, os dois personagens concordam em tudo. Tudo mesmo. Num diálogo curto, pode servir como uma forma de caracterizar os personagens. Mas imagine que esse diálogo se estenda por muito mais no texto – pode tornar a narrativa tediosa (além do fato de que, quanto mais diferentes os personagens, maior o conflito; e quanto maior o conflito, mais interessante a história se torna).

“Além do Toninho e da Lívia, quem mais está faltando?”, perguntou a Carol.
“Não sei”, respondi. “Tu sentiu falta de mais alguém, Alícia?”, perguntei.
“Não. Mas bem que eu queria.”
“Tu não queria dançar com o Juca, né?”, disse a Carol.
“Tu ia querer?”, disse a Alícia.
“Deus me livre!”, soltou a Carol.
“Ninguém ia querer aquele presente de grego. Aliás, estou vendendo. Melhor: eu pago pra quem quiser levar.”

(Andreia Evaristo – Eita! Deu treta)

Na cena acima, há uma concordância entre Carol e Alícia, de que Juca não seria uma boa companhia para dançar. Isso ajuda a caracterizar a visão que as pessoas têm de Juca – e dá o gancho para o humor gerado na última fala de Alícia.

2.                 Síndrome de Gabriela

Lembram-se de Gabriela, personagem de Jorge Amado imortalizada pelas telas do cinema e da tv? “Eu nasci assim, eu cresci assim, eu sou sempre assim, Gabriela...” Evitem isso na construção do seu personagem e, consequentemente, nos diálogos.
Se seu personagem estiver conversando com o amor da sua vida, ele falará da mesma forma que se estivesse conversando com seu inimigo? Se seu personagem for exposto a uma situação limite, ele ainda será o mesmo que nos tempos de calmaria? Lembre-se: as situações obrigam as pessoas a agirem diferente do seu usual.

“Clara, abre a porta! A gente precisa conversar...”
“Vão embora, vocês! Eu não quero conversar!”
“Abre, Clara. Nós somos suas amigas. Você precisa desabafar...”
“Eu já falei para vocês irem embora!”
“Clara! Abre isso já, se não eu vou meter o pé na porta!”, era a Clarice e, a contar pelo tom de voz, a Maria Clara deve ter acreditado que ela falava sério, porque ouvimos o barulho da porta destrancando e dois olhos vermelhos e inchados saindo lá de dentro.

(Andreia Evaristo – Moving on up)

No exemplo acima, Clarice muda de estratégia – de calma a estourada – diante da teimosia da amiga, que está trancada no banheiro chorando e se recusa a abrir a porta. Ou seja, quando um personagem é levado ao seu limite, ele deve reagir de modo diferente do que agiria numa situação normal.
Contudo, se seu objetivo é conseguir um efeito cômico, manter seu personagem com as mesmas reações e características independente das situações pode funcionar bem.

“Aimée mandou um beijo”, ele diz.
Sorrio para ele.
“Eu, sempre atrasada, né?”
Ele se aproxima de mim, beija-me os lábios com suavidade.
“Ela está se alimentando direito, docinho? Ou continua à base de pães e queijos?”
“Tenho certeza de que ela está bem, Lou.”
“Se continuar no ritmo que estava, ela vai voltar de Paris uns dez quilos mais gorda.”
“Fica tranquila, mamãe. Nossa filhinha está bem.”
“Porque não é possível ficar cinco anos estudando por lá e comendo apenas carboidratos e gorduras, é?”

(Andreia Evaristo – Em pele de cordeiro)

Aqui, a narradora continua com sua fala de mãe superprotetora, independente do que o marido diga. Isso caracteriza a personagem e cria um alívio cômico (mesmo que breve).

3.                 Backstory

É importante que seu personagem tenha um passado. Isso é inegável. Seus traumas, suas experiências, ajudaram-no a se tornar quem ele é, a justificar porque ele age da forma que age. Contudo, alguns autores iniciantes caem na armadilha de usar os diálogos para contar ao leitor algo do seu passado que seja importante para o presente ou o futuro da história. Não faça isso.
Se for necessário, demonstre nas ações dos personagens as facetas do seu passado, como elas interferem no presente, ou pontue um ou outro pensamento. Se forem muitas coisas a serem narradas, quem sabe não valha a pena fazer um capítulo (ou mais) de flashback?
Com relação ao flashback, é preciso tomar um único cuidado. Em histórias com um ritmo mais acelerado, com muita ação acontecendo, colocar um capítulo – ou uma cena – de flashback pode quebrar o ritmo da narrativa. Tem de ser uma estratégia pensada com cautela.

Eu não queria, mesmo, ter vindo a essa festa. Desde que fiquei viúvo, o convívio com as pessoas me incomoda. Não sei lidar com a pena que algumas pessoas parecem ter de mim, como não sei lidar com a compaixão exagerada. Mas, levando em conta que uma hora eu vou precisar sair da minha toca e parar de me esconder, melhor que eu o faça numa data como hoje, em que o convite era irrecusável. Quando é que o irmão caçula do meu melhor amigo vai se formar novamente numa faculdade?
(...)
Esvazio o copo e deixo-o no balcão. A garota de vermelho está de volta, oferecendo docinhos a um dos formandos.
“Aquele ali não é seu irmão?”
“Onde?”, ele tenta localizá-lo na direção em que aponto.
“Ali, com aquela garota de vermelho.”
“Sim, sim. É ele mesmo.”
Dou-lhe dois tapinhas no ombro:
“Vou lá cumprimentá-lo.”
Deixando meu amigo para trás, fixo meus olhos nos olhos da garota. Conforme a distância diminui, ela percebe que a estou encarando, mas decide não fixar o olhar em mim. Talvez seja tímida, talvez esteja jogando, se fazendo de difícil. Não quero admitir que, talvez, eu não exerça qualquer poder sobre ela.
“Jaime Hellmann!”, cumprimento, “Um novo engenheiro na família, então. Parabéns, garoto!”
“Obrigado, Lobo.” Volto a encarar a moça com seus cachos dourados caindo pelo ombro. Tenho cuidado de lançar sobre ela meu olhar mais sedutor, sem certeza de que vai funcionar. Jaime entende a deixa. “Conhece minha amiga Louise?”
Estendo minha mão em sua direção, cuidando para que o tremor interno não transpareça. Ela tira a mão direita debaixo da bandeja de doces e delicadamente deixa-a cair sobre a minha, e parece surpresa quando a puxo em direção aos meus lábios.
“Prazer, Aurélio.”
Ela cora, mas sorri. Bom sinal.
“Então você é a garota dos doces?”
“O quê...?” Ela olha a bandeja em suas mãos. “Ah, sim. Quer?”
“Qual deles você me sugere?” Seus olhos são encantadores, pequenos, amendoados, com um leve risco preto na pálpebra superior. Sexy. Não consigo desgrudar deles.
“Essa maçãzinha vermelha”, ela indica com o indicador, “aqui.”

(Andreia Evaristo – Em pele de cordeiro)

Nessa cena, temos um pouco do passado do personagem citado pelo narrador – não no diálogo. Ele é viúvo, estava há algum tempo sem sair de casa (provavelmente de luto). Todos os indícios de passado estão no narrador – o incômodo em estar num baile após passar pelo período de luto, o nervosismo em falar com a moça no baile, a intenção de esconder o tremor nas mãos. Não há um momento na fala dele que ele vá justificar alguma ação por ele cometida, como vemos em muitos livros e filmes.

4.                 Melodrama

Toda boa história, independente de ser uma comédia, um romance, um mistério ou suspense, precisa de um bom drama. É o drama um dos principais elementos narrativos que contribuem para criar vínculo com o leitor. Contudo, um drama mal trabalhado vira um melodrama: pense nas novelas mexicanas, no quanto as pessoas debocham do exagero do drama.
Tenha sempre em mente que drama é como remédio: na medida certa, ajuda a melhorar; se exagerar, pode matar.

“Ei!”, disse ela, indignada com o esbarrão.
“Foi mal aê, princesa.”
“Foi mal nada, engraçadinho. Você fez de propósito.”
“Tá locona, mina?”
“Loucona? Eu conheço bem do seu tipinho. E o que vem depois, hein?! Vai me passar a mão, vai abusar de mim aqui, na frente de todo mundo?”
“E aí, ó”, disse ele, olhando ao redor, “a mina endoideceu. Tá surtada!”
“Surtada, eu? Vocês homens são todos iguais! Pensa que eu sou o quê? Um objeto? Uma coisa qualquer que você passa a mão e leva?”
“Calmaê, mina”, disse ele, tentando contê-la, segurando-a pelo braço nervoso.
“Não encosta a mão em mim”, gritou ela, “não encosta a mão em mim, seu maníaco!”
“Comé que é?”
“Maníaco! Estuprador!”

(Andreia Evaristo – Macacos no sótão – Em: Chiclete pra guardar pra depois)

O exagero na reação da moça do diálogo acima é usado com uma intenção: criar humor através da ação exagerada da personagem em relação a um ato banal, como um esbarrão dentro de uma boate cheia. Emoções são ótimas no seu texto; o exagero delas leva à comicidade. Um drama mal feito vira uma ótima comédia, dizia meu professor de teatro.

5.                 Diálogos difíceis de acompanhar

O último item a ser evitado: diálogos difíceis de acompanhar. E o que pode deixar seu diálogo difícil de acompanhar?

* Muitas gírias: gírias são ótimas para a fluidez do diálogo. Contudo, em excesso, elas podem transformar a linguagem em uma língua completamente diferente. Imagine uma pessoa, daqui a alguns anos, lendo um diálogo cheio de gírias da atualidade?

— Aí, vamo subir por aqui — sugeriu Tutuca.
— Não, vamo pelo Lazer que é mais aberto, morou? Dá pra ver todo mundo e vamo dar os berro pra Creide levar — disse Martelo.
— Que nada, cumpádi! — rebateu Tutuca. — Bandido que é bandido tem que andar é trepado, morou? Não vou andar na mão baludo, não. Sabe lá se aparece alguém aí pra sabarcar nosso dinheiro? A gente nem sabe quem é quem aqui, cumpádi! Tá pensando que só tem nós de bicho-solto aqui, xará? Aqui só tem favelado! Tem nego até da Baixada entocado por aí. E se os samango pia na parada? Como é que você vai trocar com eles? Na mão é que não vai dar! — concluía Tutuca sem perder o ritmo da caminhada.

(Paulo Lins – Cidade de Deus)

No exemplo acima, temos uma cena que se passa dentro da favela. Isso justifica a fala dos personagens, cheias de gírias do morro. Entendo o valor da representação da cultura desse grupo de pessoas, sempre à margem da sociedade. Mas precisamos concordar que esse não é o tipo de diálogo que facilita a leitura. Assim, enquanto escritor, você precisa ter consciência do seu objetivo com a escrita – é retratar a realidade tal qual ela se passa? Experimentar colocar na escrita formal reflexos de uma cultura marginalizada? Se sim, saiba que isso pode prejudicar a compreensão global de sua obra – e afastar alguns leitores.

* Dialetos específicos: cada região fala de uma forma, assim como cada profissão tem um vocabulário específico. É bom enriquecer os diálogos dos seus personagens com essas marcas de dialeto. Mas, mais uma vez, o excesso pode ser fatal. Imagine um diálogo entre um gaúcho e um baiano, com todas as palavras específicas de cada região? A menos que você queira fazer comédia, tenha ponderação.

“Me conta, bonita, o que houve?”
“Por quê?”
“Tu estás suspirando muito hoje. Algum problema na faculdade? Não gostaste do teu primeiro dia de aula?”
“Não é isso. Eu adorei meu primeiro dia de aula. O professor era ótimo e fiz minha primeira amizade.” Passo as mãos pelos lados da cabeça, puxando os cabelos com os dedos, e junto os dedos em cima da cabeça. “Eu almocei com o cara do celular hoje.”
Rapidamente, ela se senta no sofá:
“O bonitão?”
Confirmo com a cabeça.
“E é com isso que tu estás preocupada?”

(Eva Sartorini – Sugar baby)

No diálogo acima, Sandra tem um sotaque bem característico de quem mora em Florianópolis, usando as segundas conjugações dos verbos de um modo mais próximo do que prevê a gramática. Além disso, ela tem uma marca na fala que lhe é bastante comum – chamar as pessoas de bonito ou bonita, em vez de pelo nome. Isso lhe atribui veracidade, já que a história se passa em Florianópolis e a outra personagem não é da ilha.

* Excesso de rebuscamento: pense em sua própria fala. Pense na fala das pessoas com quem você convive. Por mais que um escritor deva dominar o código linguístico – já que a língua é o seu instrumento de trabalho – na hora de construir diálogo, esqueça as regras gramaticais. Dê vida à fala dos seus personagens, busque escrever mais próximo do modo como eles falam. Crie vícios de linguagem: todos nós conhecemos aquela pessoa que abusa do toda vez que vai falar, ou aquela que abusa do daí. Aproveite-se disso para tornar as falas mais verossímeis.

* Falta de indicadores: Indicadores são os trechos do narrador dizendo quem é que está falando. Esses indicadores devem ser o mais transparentes possível – quanto menos o leitor prestar atenção a eles, melhor. O excesso de indicadores é chato, e muitas vezes o leitor consegue identificar quem está falando mesmo sem ficar repetindo. Porém, cuide para não faltar indicadores. Não há nada mais chato que o leitor precisar interromper a leitura de um trecho por não compreender quem estava dizendo o quê. Inclusive, aqui, evite o rebuscamento. Se você dizer que Maria asseverou, em vez de Maria disse, o leitor talvez não compreenda o que foi dito – e vai precisar de um dicionário para compreender a palavra. Sempre que o leitor estiver prestando mais atenção às palavras que ao conteúdo, ele perde o ritmo da narrativa.

“O que foi isso?”, perguntou Eva, chegando à mesa.
“Sua irmã engasgou quando eu falei que vamos procurar um ginecologista.”
“Mas não vamos mesmo!”, esbravejei.
“Por que não, filha?”
“Porque não. Não vou e pronto.”
“Ai, mãe, essa guria é muito teimosa.”
“E você é muito enxerida.”
“Chega, vocês duas.”

(Andreia Evaristo – Eita! Deu treta)

Faça um exercício com o diálogo acima. A primeira fala é de Eva. De quem é a segunda? A terceira é da narradora. De quem é a quarta? E a quinta? E as demais? Tenha sempre em mente: seu leitor é inteligente. Você não precisa identificar todas as falas – apenas o suficiente para que seja entendido de quem é cada fala naquele diálogo.

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