Como você já
viu aqui, é através dos diálogos que seu personagem ganha vida. O personagem
pode até representar uma ideia na cabeça do leitor, mas ele só está vivo quando
ele abre a boca e fala. Assim, vamos relembrar – um bom diálogo (assim como uma
boa cena) tem basicamente três funções: caracterizar o personagem, situar o
personagem ou levar a história para frente. Tendo isso em mente, entenda que
ainda assim, alguns diálogos funcionam melhor que outros.
Antes que eu sejamassacradaconfrontada, tenha em mente que: a) Essas são dicas, ou seja, são uma forma de fazer, não uma fórmula. Seu texto é seu, e só você pode dizer o que funciona para você ou não; b) Só pode quebrar regras quem as conhece. Então, enquanto escritor, estude, estude, estude - se achar que não serve para você, subverta, descarte, aprimore; c) Mais dicas são bem-vindas. É para isso que servem o espaço de comentários lá embaixo.
O que evitar:
1.
Monólogo a
dois
Você
provavelmente já se deparou com algum livro onde dois (ou mais) personagens que
conversavam entre si e concordavam em tudo. Isso é péssimo. Uma boa história se
dá no conflito: é no conflito que os personagens são levados às últimas
consequências, que eles mostram quem eles são de verdade.
“Acho que, se as coisas aconteceram desse
jeito com ela, foi porque ela provocou”, disse Joana.
“Também acho. Se fosse uma menina direita,
não estaria num baile funk. Estaria
em casa, com a família”, concordei.
“Exato. Quem quer o respeito, deve se dar ao
respeito.”
“Muito fácil falar em estupro, agora. Só
porque o vídeo caiu na internet.”
“Estupro? Que estupro, que nada. Ela foi
procurar os caras porque quis.”
No exemplo
acima, os dois personagens concordam em tudo. Tudo mesmo. Num diálogo curto,
pode servir como uma forma de caracterizar os personagens. Mas imagine que esse
diálogo se estenda por muito mais no texto – pode tornar a narrativa tediosa
(além do fato de que, quanto mais diferentes os personagens, maior o conflito;
e quanto maior o conflito, mais interessante a história se torna).
“Além do Toninho e da Lívia, quem mais está
faltando?”, perguntou a Carol.
“Não sei”, respondi. “Tu sentiu falta de
mais alguém, Alícia?”, perguntei.
“Não. Mas bem que eu queria.”
“Tu não queria dançar com o Juca, né?”,
disse a Carol.
“Tu ia querer?”, disse a Alícia.
“Deus me livre!”, soltou a Carol.
“Ninguém ia querer aquele presente de grego.
Aliás, estou vendendo. Melhor: eu pago pra quem quiser levar.”
(Andreia Evaristo
– Eita! Deu treta)
Na cena
acima, há uma concordância entre Carol e Alícia, de que Juca não seria uma boa
companhia para dançar. Isso ajuda a caracterizar a visão que as pessoas têm de
Juca – e dá o gancho para o humor gerado na última fala de Alícia.
2.
Síndrome de
Gabriela
Lembram-se de
Gabriela, personagem de Jorge Amado imortalizada pelas telas do cinema e da tv?
“Eu nasci assim, eu cresci assim, eu sou
sempre assim, Gabriela...” Evitem isso na construção do seu personagem e,
consequentemente, nos diálogos.
Se seu
personagem estiver conversando com o amor da sua vida, ele falará da mesma
forma que se estivesse conversando com seu inimigo? Se seu personagem for
exposto a uma situação limite, ele ainda será o mesmo que nos tempos de
calmaria? Lembre-se: as situações obrigam as pessoas a agirem diferente do seu
usual.
“Clara, abre a porta! A gente precisa
conversar...”
“Vão embora, vocês! Eu não quero conversar!”
“Abre, Clara. Nós somos suas amigas. Você
precisa desabafar...”
“Eu já falei para vocês irem embora!”
“Clara! Abre isso já, se não eu vou
meter o pé na porta!”, era a Clarice e, a contar pelo tom de voz, a Maria Clara
deve ter acreditado que ela falava sério, porque ouvimos o barulho da porta
destrancando e dois olhos vermelhos e inchados saindo lá de dentro.
(Andreia
Evaristo – Moving on up)
No exemplo
acima, Clarice muda de estratégia – de calma a estourada – diante da teimosia
da amiga, que está trancada no banheiro chorando e se recusa a abrir a porta.
Ou seja, quando um personagem é levado ao seu limite, ele deve reagir de modo
diferente do que agiria numa situação normal.
Contudo, se
seu objetivo é conseguir um efeito cômico, manter seu personagem com as mesmas
reações e características independente das situações pode funcionar bem.
“Aimée mandou um beijo”, ele diz.
Sorrio para ele.
“Eu, sempre atrasada, né?”
Ele se aproxima de mim, beija-me os lábios
com suavidade.
“Ela está se alimentando direito, docinho?
Ou continua à base de pães e queijos?”
“Tenho certeza de que ela está bem, Lou.”
“Se continuar no ritmo que estava, ela vai
voltar de Paris uns dez quilos mais gorda.”
“Fica tranquila, mamãe. Nossa filhinha está
bem.”
“Porque não é possível ficar cinco anos
estudando por lá e comendo apenas carboidratos e gorduras, é?”
(Andreia
Evaristo – Em pele de cordeiro)
Aqui, a
narradora continua com sua fala de mãe superprotetora, independente do que o
marido diga. Isso caracteriza a personagem e cria um alívio cômico (mesmo que
breve).
3.
Backstory
É importante
que seu personagem tenha um passado. Isso é inegável. Seus traumas, suas
experiências, ajudaram-no a se tornar quem ele é, a justificar porque ele age
da forma que age. Contudo, alguns autores iniciantes caem na armadilha de usar os
diálogos para contar ao leitor algo do seu passado que seja importante para o
presente ou o futuro da história. Não faça isso.
Se for
necessário, demonstre nas ações dos personagens as facetas do seu passado, como
elas interferem no presente, ou pontue um ou outro pensamento. Se forem muitas
coisas a serem narradas, quem sabe não valha a pena fazer um capítulo (ou mais)
de flashback?
Com relação
ao flashback, é preciso tomar um
único cuidado. Em histórias com um ritmo mais acelerado, com muita ação
acontecendo, colocar um capítulo – ou uma cena – de flashback pode quebrar o ritmo da narrativa. Tem de ser uma
estratégia pensada com cautela.
Eu não queria, mesmo, ter vindo a essa
festa. Desde que fiquei viúvo, o convívio com as pessoas me incomoda. Não sei
lidar com a pena que algumas pessoas parecem ter de mim, como não sei lidar com
a compaixão exagerada. Mas, levando em conta que uma hora eu vou precisar sair
da minha toca e parar de me esconder, melhor que eu o faça numa data como hoje,
em que o convite era irrecusável. Quando é que o irmão caçula do meu melhor
amigo vai se formar novamente numa faculdade?
(...)
Esvazio o copo e deixo-o no balcão. A garota
de vermelho está de volta, oferecendo docinhos a um dos formandos.
“Aquele ali não é seu irmão?”
“Onde?”, ele tenta localizá-lo na direção em
que aponto.
“Ali, com aquela garota de vermelho.”
“Sim, sim. É ele mesmo.”
Dou-lhe dois tapinhas no ombro:
“Vou lá cumprimentá-lo.”
Deixando meu amigo para trás, fixo meus
olhos nos olhos da garota. Conforme a distância diminui, ela percebe que a
estou encarando, mas decide não fixar o olhar em mim. Talvez seja tímida,
talvez esteja jogando, se fazendo de difícil. Não quero admitir que, talvez, eu
não exerça qualquer poder sobre ela.
“Jaime Hellmann!”, cumprimento, “Um novo
engenheiro na família, então. Parabéns, garoto!”
“Obrigado, Lobo.” Volto a encarar a moça com
seus cachos dourados caindo pelo ombro. Tenho cuidado de lançar sobre ela meu
olhar mais sedutor, sem certeza de que vai funcionar. Jaime entende a deixa.
“Conhece minha amiga Louise?”
Estendo minha mão em sua direção, cuidando
para que o tremor interno não transpareça. Ela tira a mão direita debaixo da
bandeja de doces e delicadamente deixa-a cair sobre a minha, e parece surpresa
quando a puxo em direção aos meus lábios.
“Prazer, Aurélio.”
Ela cora, mas sorri. Bom sinal.
“Então você é a garota dos doces?”
“O quê...?” Ela olha a bandeja em suas mãos.
“Ah, sim. Quer?”
“Qual deles você me sugere?” Seus olhos são
encantadores, pequenos, amendoados, com um leve risco preto na pálpebra
superior. Sexy. Não consigo desgrudar deles.
“Essa maçãzinha vermelha”, ela indica com o
indicador, “aqui.”
(Andreia
Evaristo – Em pele de cordeiro)
Nessa cena,
temos um pouco do passado do personagem citado pelo narrador – não no diálogo.
Ele é viúvo, estava há algum tempo sem sair de casa (provavelmente de luto).
Todos os indícios de passado estão no narrador – o incômodo em estar num baile
após passar pelo período de luto, o nervosismo em falar com a moça no baile, a
intenção de esconder o tremor nas mãos. Não há um momento na fala dele que ele
vá justificar alguma ação por ele cometida, como vemos em muitos livros e
filmes.
4.
Melodrama
Toda boa
história, independente de ser uma comédia, um romance, um mistério ou suspense,
precisa de um bom drama. É o drama um dos principais elementos narrativos que
contribuem para criar vínculo com o leitor. Contudo, um drama mal trabalhado
vira um melodrama: pense nas novelas mexicanas, no quanto as pessoas debocham
do exagero do drama.
Tenha sempre
em mente que drama é como remédio: na medida certa, ajuda a melhorar; se exagerar,
pode matar.
“Ei!”, disse ela, indignada com o esbarrão.
“Foi mal aê, princesa.”
“Foi mal nada, engraçadinho. Você fez de
propósito.”
“Tá locona, mina?”
“Loucona? Eu conheço bem do seu tipinho. E o
que vem depois, hein?! Vai me passar a mão, vai abusar de mim aqui, na frente
de todo mundo?”
“E aí, ó”, disse ele, olhando ao redor, “a
mina endoideceu. Tá surtada!”
“Surtada, eu? Vocês homens são todos iguais!
Pensa que eu sou o quê? Um objeto? Uma coisa qualquer que você passa a mão e
leva?”
“Calmaê, mina”, disse ele, tentando
contê-la, segurando-a pelo braço nervoso.
“Não encosta a mão em mim”, gritou ela, “não
encosta a mão em mim, seu maníaco!”
“Comé que é?”
“Maníaco! Estuprador!”
(Andreia
Evaristo – Macacos no sótão – Em: Chiclete pra guardar pra depois)
O exagero na
reação da moça do diálogo acima é usado com uma intenção: criar humor através
da ação exagerada da personagem em relação a um ato banal, como um esbarrão
dentro de uma boate cheia. Emoções são ótimas no seu texto; o exagero delas
leva à comicidade. Um drama mal feito vira uma ótima comédia, dizia meu
professor de teatro.
5.
Diálogos
difíceis de acompanhar
O último item
a ser evitado: diálogos difíceis de acompanhar. E o que pode deixar seu diálogo
difícil de acompanhar?
* Muitas gírias: gírias são ótimas para
a fluidez do diálogo. Contudo, em excesso, elas podem transformar a linguagem
em uma língua completamente diferente. Imagine uma pessoa, daqui a alguns anos,
lendo um diálogo cheio de gírias da atualidade?
— Aí, vamo subir por aqui — sugeriu Tutuca.
— Não, vamo pelo Lazer que é mais aberto,
morou? Dá pra ver todo mundo e vamo dar os berro pra Creide levar — disse
Martelo.
— Que nada, cumpádi! — rebateu Tutuca. —
Bandido que é bandido tem que andar é trepado, morou? Não vou andar na mão
baludo, não. Sabe lá se aparece alguém aí pra sabarcar nosso dinheiro? A gente
nem sabe quem é quem aqui, cumpádi! Tá pensando que só tem nós de bicho-solto
aqui, xará? Aqui só tem favelado! Tem nego até da Baixada entocado por aí. E se
os samango pia na parada? Como é que você vai trocar com eles? Na mão é que não
vai dar! — concluía Tutuca sem perder o ritmo da caminhada.
(Paulo Lins –
Cidade de Deus)
No exemplo
acima, temos uma cena que se passa dentro da favela. Isso justifica a fala dos
personagens, cheias de gírias do morro. Entendo o valor da representação da
cultura desse grupo de pessoas, sempre à margem da sociedade. Mas precisamos
concordar que esse não é o tipo de diálogo que facilita a leitura. Assim,
enquanto escritor, você precisa ter consciência do seu objetivo com a escrita –
é retratar a realidade tal qual ela se passa? Experimentar colocar na escrita
formal reflexos de uma cultura marginalizada? Se sim, saiba que isso pode
prejudicar a compreensão global de sua obra – e afastar alguns leitores.
* Dialetos específicos: cada região
fala de uma forma, assim como cada profissão tem um vocabulário específico. É
bom enriquecer os diálogos dos seus personagens com essas marcas de dialeto.
Mas, mais uma vez, o excesso pode ser fatal. Imagine um diálogo entre um gaúcho
e um baiano, com todas as palavras específicas de cada região? A menos que você
queira fazer comédia, tenha ponderação.
“Me conta, bonita, o que houve?”
“Por quê?”
“Tu estás suspirando muito hoje. Algum problema
na faculdade? Não gostaste do teu primeiro dia de aula?”
“Não é isso. Eu adorei meu primeiro dia de
aula. O professor era ótimo e fiz minha primeira amizade.” Passo as mãos pelos
lados da cabeça, puxando os cabelos com os dedos, e junto os dedos em cima da
cabeça. “Eu almocei com o cara do celular hoje.”
Rapidamente, ela se senta no sofá:
“O bonitão?”
Confirmo com a cabeça.
“E é com isso que tu estás preocupada?”
(Eva Sartorini –
Sugar baby)
No diálogo
acima, Sandra tem um sotaque bem característico de quem mora em Florianópolis,
usando as segundas conjugações dos verbos de um modo mais próximo do que prevê
a gramática. Além disso, ela tem uma marca na fala que lhe é bastante comum –
chamar as pessoas de bonito ou bonita, em vez de pelo nome. Isso lhe
atribui veracidade, já que a história se passa em Florianópolis e a outra
personagem não é da ilha.
* Excesso de rebuscamento: pense em sua
própria fala. Pense na fala das pessoas com quem você convive. Por mais que um
escritor deva dominar o código linguístico – já que a língua é o seu
instrumento de trabalho – na hora de construir diálogo, esqueça as regras
gramaticais. Dê vida à fala dos seus personagens, busque escrever mais próximo
do modo como eles falam. Crie vícios de linguagem: todos nós conhecemos aquela
pessoa que abusa do né toda vez que
vai falar, ou aquela que abusa do daí.
Aproveite-se disso para tornar as falas mais verossímeis.
* Falta de indicadores: Indicadores são
os trechos do narrador dizendo quem é que está falando. Esses indicadores devem
ser o mais transparentes possível – quanto menos o leitor prestar atenção a
eles, melhor. O excesso de indicadores é chato, e muitas vezes o leitor
consegue identificar quem está falando mesmo sem ficar repetindo. Porém, cuide
para não faltar indicadores. Não há nada mais chato que o leitor precisar
interromper a leitura de um trecho por não compreender quem estava dizendo o
quê. Inclusive, aqui, evite o rebuscamento. Se você dizer que Maria asseverou, em vez de Maria disse, o leitor talvez não compreenda
o que foi dito – e vai precisar de um dicionário para compreender a palavra.
Sempre que o leitor estiver prestando mais atenção às palavras que ao conteúdo,
ele perde o ritmo da narrativa.
“O que foi isso?”, perguntou Eva, chegando à
mesa.
“Sua irmã engasgou quando eu falei que vamos
procurar um ginecologista.”
“Mas não vamos mesmo!”, esbravejei.
“Por que não, filha?”
“Porque não. Não vou e pronto.”
“Ai, mãe, essa guria é muito teimosa.”
“E você é muito enxerida.”
“Chega, vocês duas.”
(Andreia Evaristo
– Eita! Deu treta)
Faça um
exercício com o diálogo acima. A primeira fala é de Eva. De quem é a segunda? A
terceira é da narradora. De quem é a quarta? E a quinta? E as demais? Tenha
sempre em mente: seu leitor é inteligente. Você não precisa identificar todas
as falas – apenas o suficiente para que seja entendido de quem é cada fala
naquele diálogo.
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