sábado, 25 de junho de 2016

Sartre e o trânsito


Você tem um carro. Percebe como os demais motoristas são egoístas: é quem mais pode se enfiar na frente do outro. Há os que molengam na sua frente e descem o pé no acelerador quando percebem sua intenção de ultrapassar. Você já não aguenta mais aqueles que, ao sair de vagas de garagem, colocam o rabo do carro no meio da rua, quando não na pista contrária. Então, você cuida de si mesmo, e dos outros. Mas não pode se esquecer dos pedestres, seres indefesos e insanos, que levantam a mão na calçada e não esperam que você tenha tempo de parar, se jogando na faixa de pedestres. Você freia, canta pneus e, olhando pelo retrovisor, reza para que o carro de trás não lhe acerte em cheio.


Você tem uma moto. Precisa trafegar mais rápido – afinal, é para isso que as motos foram feitas, não é? Então, você se embrenha pelo meio do trânsito parado, ziguezagueando pelo “corredor”, pedindo a Deus que nenhum desavisado troque de via sem dar sinal ou uma porta se abra à sua frente – portas abertas para o meio da rua podem significar uma cova. Quando tudo para no semáforo, você se apressa e para antes da faixa (talvez um pouquinho mais para frente), com olhos atentos à luz verde que se acende, mas esquece que está no meio da rua – e quando arranca, acaba fechando a frente do carro que arrancou junto.

Você tem uma bicicleta. Não precisa de capacete, joelheira, cotoveleira – isso é implicância de mãe. Joinville é a cidade das bicicletas, poxa, você deveria poder andar de zica com tranquilidade. Há quilômetros de ciclofaixas, a propaganda anunciou na tv. E você vai, porque é econômico, ecológico e saudável. Só não será saudável quando o condutor apressado invadir a ciclofaixa para desviar do outro veículo que precisa convergir à esquerda, acertando aquele seu joelho que você não quis proteger.

Você tem um carrinho de bebê. Não pode andar pelas calçadas, porque elas estão em péssimo estado de conservação, ou simplesmente não existem. Então, você anda pelo acostamento, tentando juntar-se, o máximo que pode, ao cantinho da rua, tentando proteger a si próprio e ao bebê. Mas nunca será o bastante: para os motoristas, os motociclistas e até mesmo os ciclistas, só seria o bastante se você estivesse mesmo na calçada – aquela, por onde você não consegue trafegar.

Sartre tinha razão: no trânsito, o inferno são os outros.


(Andreia Evaristo)
Publicada no jornal A Notícia, em 25 de junho de 2016.
Online: Diário Catarinense

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