quinta-feira, 9 de junho de 2016

Nublada

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O dia não tinha amanhecido. Era como se estivesse imitando-lhe o comportamento da alma, que há dias não conseguia amanhecer. Pelo caminho, o céu branco estava baixo, como se as nuvens tentassem tocar o chão. Sem qualquer poesia – não há beleza num teto prestes a despencar. O ar úmido e alvo lhe enchia os pulmões, sufocando.

Um dia cinzento, diria uma pessoa comum. Não ela. Dias nublados, com cerração baixa, nunca são cinza. São da cor da depressão. E se a depressão é branca como uma camisa de força alvejada com cloro puríssimo, então dias sem sol são exatamente dessa cor.

Conforme o carro avançava pelo mapa diário, percorrendo quilômetro após quilômetro daquele trajeto marcado pela persistência do dever que chama, o tempo retrocedia. Em vez de clarear pela manhã, o dia escurecia. Aos poucos. Devagar. Como se ninguém estivesse prestando atenção – nunca ninguém presta atenção a essas coisas inúteis que são as cores do céu, o cheiro das nuvens ou a ampulheta cujas areias se elevam em vez de escorrerem para o fundo.

A mão que bateu a porta quando se foi apertava-lhe o peito. Dura e fria como a cerâmica do chão da cozinha, onde ela se sentou e chorou até que a fonte estivesse seca. O coração tentava continuar a bater dentro daqueles dedos que o seguravam, mas faltava espaço. Então, batia mais devagar, mais leve, mais escasso, e a vida perdia as forças de seguir em frente. Sem o pulsar do sangue que a empurrasse adiante, era mais cômodo parar e ficar.

Sentada a seu lado no carro, sua alma lhe encarava. Qual o sentido disso tudo? Nascer, crescer, se apaixonar, sofrer? Faltava-lhe morrer, para atribuir sentido ao caos? Por um breve instante, pensou no colo da mãe, tão quente e acolhedor quanto uma xícara de chocolate quente no inverno. Mas a mãe tinha lhe avisado que isso iria acontecer, cedo ou tarde, e o que ela menos precisava, nesse momento, era lidar com rancores e eu-te-disses.

No centro, parou no semáforo. Se precisasse explicar como tinha chegado até ali, não saberia. Estava ocupada demais com coisas mais importantes que o trânsito, e os movimentos que a levariam até o trabalho eram tão ensaiados que já tinham mecanizado. Por entre as nuvens, um raio de sol escapou: amarelo, luminoso, mudando a brancura daquele quadro branco de loucura. A camisa de força teria de esperar.

(Andreia Evaristo)
Crônica publicada em 14 de maio de 2016, no jornal A Notícia.

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