quarta-feira, 2 de dezembro de 2015

Livro em branco ou enciclopédia?

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A vida diária nos puxa à correria. A gente acorda cedo, antes que o galo cante chamando o nascer do sol. Mal engole um café com pão, veste a roupa da lida com a pressa de quem sabe que o mundo pode acabar a qualquer momento, e sai. Corre no trânsito, trabalha correndo, deixa o almoço escorregar pela garganta mal mastigado, para depois ser mal digerido, e volta correndo ao trabalho apressado. A vida tem pressa para acontecer, e não temos tempo a perder com frivolidades, como a preocupação com o outro. As famílias estão perdendo o contato com parentes em segundo grau: irmãos adultos, muitas vezes, só se encontram uma ou duas vezes por mês; tios e primos são uma raridade presente apenas em festividades religiosas, como Natal ou Páscoa. Tudo isso porque – achamos – a vida não para.


O problema é que uma hora a vida para. Para sempre. De uma vez e subitamente. E quando a vida para, a gente é obrigada a parar a vida para cortejar a morte.

Miguel se foi na última semana. Viveu apenas 27 horas, não pode se aconchegar nos braços maternos: nasceu prematuro, foi levado à incubadora e, não fosse por uma foto que o pai tirou com o celular do bebê entubado, a mãe não teria uma memória concreta daquele que ela carregou no ventre por trinta e poucas semanas. A vida de Miguel era um livro a ser escrito, uma partitura pronta para ser composta, um filme a ser rodado, mas foi interrompida cedo demais.

Nelson se foi na última semana. Viveu 81 anos. Escreveu sua história nesse mundo: comeu, bebeu, dançou, cantou. Amou uma, duas, dez vezes; casou-se duas. Aproveitou todas as páginas desse livro que foi escrito, assobiou as notas da sua própria canção, protagonizou cenas do seu próprio roteiro, mas sua vida também foi interrompida cedo demais.

A grande verdade é que nunca estamos preparados para a morte. Corremos tanto pela vida, que não queremos aceitar a verdade absoluta que com ela se encerra: um dia, quer queiramos, quer não, a vida para. Há um tempo para tudo. Há quem se entristeça da vida que parou às 27 horas, porque ainda era um livro em branco. Há quem se entristeça da enciclopédia viva que se encerrou aos 81 anos. Eu me entristeço com ambas – não tenho medo de morrer, tenho pena.


(Andreia Evaristo)

Publicado no jornal A Notícia, em 24 de outubro de 2015.

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