quarta-feira, 9 de dezembro de 2015

Barbeiragem

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Entro no carro. Confiro espelhos, coloco o cinto de segurança. Ligo o motor e o rádio, preparando meu espírito para mais uma batalha no trânsito. Por mais que eu tenha experiência dirigindo ano após ano nos horários de rush, há sempre um novo desafio a ser vencido.

As ruas, devido às chuvas e à má qualidade do asfalto, estão esburacadas. São buracos uns atrás dos outros, uns aos lados dos outros e uns esperando vagar espaço para entrar no meio dos outros. Desvio deles como uma viciada em videogame a pilotar um joystick.
A atenção precisa ser triplicada. Veículos se acumulam nos congestionamentos, parando brusco a qualquer momento, com ou sem luz de freio. Pedestres suicidas precisam ser desviados, são quase kamikazes a andar a pé, se jogando na frente dos veículos em movimento.


Olho para o lado. O motorista está com a cara emburrada. Parece que comeu e não digeriu bem, ou tomou uma bronca. Azedo. Acelero e deixo-o ficar.

Paro no semáforo. O trânsito mudou muito nos últimos anos, mas há coisas que as pessoas demoram muito a se acostumar. Nesse cruzamento específico, onde outrora havia uma via para virar à esquerda, hoje a conversão é proibida. Não há mais via para virar à esquerda. Uma moça, desatenta ou desavisada, para o carro ao lado do meu, para fazer a conversão.

Num impulso, minha tendência é repetir a mesma ação que, dia após dia, vejo acontecer naquele local – abrir o vidro e gritar para ela, com toda a força que tiver: “Sai da contramão!” Mas por um segundo me distraio com a música que toca na rádio, aumento o volume.

Quando volto a olhar, um carro virou a esquina de frente para a moça da contramão. Ele torce a boca, bufa, desvia e para ao lado dela. Já estou imaginando a bronca que a pobrezinha vai levar, os absurdos que vai ouvir (incluindo o batidíssimo “tinha que ser mulher”). Ele abre o vidro e, para minha surpresa, calmamente a avisa: “Você está na contramão, moça.”

Estou chocada. Sim, um momento de lucidez e bom senso em meio a toda essa loucura do trânsito é um choque para mim. O sinal abre, ela pede passagem. Deixo-a entrar. Preciso exercitar a gentileza que ainda vive em mim, escondida, e que precisou de um homem estranho para trazê-la de volta à tona.


(Andreia Evaristo)

Publicado em 14 de novembro de 2015, no jornal A Notícia

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