quarta-feira, 27 de abril de 2016

A música que nos toca


Sábado, aquele horário em que as pessoas a quem Deus ajuda durante a semana esticam os ossos na cama. Deixei a preguiça deitada ao lado do marido, e fui em busca de mais um degrau na escada que me há de levar aonde moram os sonhos.

A sala de reuniões, testemunha de seriedades e importâncias, estava vestida de artes. Pessoas, com idades desde aqueles que estão parados à porta da maioridade até aqueles que estão com as brancas cãs brotando no couro cabeludo, ocupavam cadeiras dispostas em círculo – mesmo formato das danças ritualísticas. O objetivo comum era valioso: arrancar de dentro de nós a palavra primal, a poesia mais pura. Ali, não importava de onde tínhamos vindo ou para onde iríamos: éramos todos poetas pulsantes em busca da toada perfeita.


O professor queria extrair de cada um o grito ancestral: a palavra que antecede a palavra, a entrelinha, o relicário de vocábulos. A cada exercício, fomos nos entregando ao poema que se escreve quase solitário, quase sem interferência humana.
Foi quando – acho que era de tarde, as janelas fechadas não me deixam recordar direito os horários – um pedido inusitado se fez: mais do que declamar nossos escritos, precisaríamos cantá-los. Um refrigério alcançou meu estômago: como posso cantar algo que foi escrito sem considerar o ritmo?

O primeiro corajoso foi um garoto de saia. Ele abriu a boca e um quase ensaiado canto gregoriano inundou o espaço. Minha pele se arrepiou, minha boca se abriu em espanto: como era possível que aquela melodia saísse de sua boca como se saísse de sua alma? Um senhor de cabelos grisalhos devidamente arrumados com brilhantina entoou um bolero, digno dos áureos anos da rádio. Depois, a moça de cabelos cacheados e voz de cristal nos presenteou com um samba-canção. Eu temia pela minha vez, mas ansiava por ela, como uma criança a esperar o primeiro dia de aula.

Quando o momento chegou, vibrei minhas cordas vocais e cantei. Naquele momento percebi: cada um de nós tem uma vitrola interna, que gira um disco infinito em agulhas de diamante. Minha alma é mpb. Não importa se eu gosto de rock ou de pop. No momento em que sem pensar eu canto, sou essa coisa brasileira, essa mistura cadenciada e deliciosa que encanta e seduz milhares de pessoas. E quer saber? Me encanta a música que me toca.

(Andreia Evaristo)
Crônica publicada no jornal A Notícia, em 23 de abril de 2016.

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