domingo, 20 de março de 2016

Não há escrita sem dor


O fazer literário é colher frutos silvestres na lida cotidiana. Precisa de um bom recorte da realidade, e de uma lente íntima e pessoal que possa transpor no papel mais do que o acontecimento em si, mas a própria essência do ser.

Não estou nos ônibus nem nos pontos, nos botequins nem nos shoppings. Ando sem tempo para a colheita que o mundo oferece. Ainda assim, todos os dias, histórias me caem no colo, como crianças à procura de alento. São dores dilaceradas, mutiladas, que encontram no desabafo ao meu ouvido a remissão dos pecados.



Da empatia com as mazelas alheias, a dor brota e floresce em mim mesma. No rio tinto que me percorre a veia, enfio minha pena e sangro as palavras no papel. Não há literatura sem dor, é um eterno sangrar de dedos em busca da palavra mais crua, mais pura – aquela, insubstituível. Mas a cada parágrafo, condeno-me à minha própria insatisfação, de que poderia haver outra palavra mais verdadeira. Nunca há.

A menina que vive um relacionamento abusivo com o namorado tem dúvidas sobre o que fazer. É difícil ser jovem de novo, pelos olhos do outro, lidar com um coração que amou uma única vez, que ainda não sangrou diante de um laço que se desfez. É mais fácil acreditar em desculpas rotas e fracas, se esforçar para justificar o injustificável, fechar os olhos ao óbvio diante de si.

A jovem de coração amassado e descartado como a latinha de cerveja vazia se embebeda das perguntas do que não será mais. Tive culpa? Onde foi que eu errei? Errou no momento em que acreditou que, sozinha, poderia levar adiante um arranjo que precisa de dois para se manter equilibrado. Faço-a prometer que não vai rastejar, que – enquanto mulher – vai manter a cabeça erguida, mesmo que doa, mesmo que muda, mesmo que lacrimejante.

A garota que, ainda bebê, presenciou a mãe morrer chora a injustiça de ter sido criada por alguém que lhe escondeu a verdade da sua origem. Por mais dura que seja, nossa vida é nossa, e ninguém tem o direito de nos esconder de nós mesmos.

A folha em branco me encara de volta, implorando pelas histórias que precisam ser contadas. Falta-me alma, falta-me tempo, falta-me coragem. É o medo de não alcançar o âmago de seus sentimentos que me impede de começar. Amanhã eu tento de novo.

(Andreia Evaristo)
Publicada no jornal A Notícia, em 19 de março de 2016.

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