Era a terceira vez que ela me falava do ex-marido naquele ano. Eles tinham se casado na igreja, conforme a tradição. Tinham tido um casal de filhos, uma casa e um cachorro, com direito a café da manhã de comercial de margarina aos domingos. O modelo “perfeitinho” dos contos de fadas modernos.
Mesmo que ela nunca dissesse, mesmo sabendo que negaria se eu perguntasse, eu tinha certeza de que ela ainda o amava. Já se iam dez anos desde a separação. Os filhos, adolescentes, já tinham perdido a ilusão de que os pais, um dia, voltariam a se reconciliar. Mal sabiam eles que, de tempos em tempos, os pais voltavam a dividir os lençóis e as juras de amor de antigamente.
Munida de uma cara-de-pau entalhada detalhe por detalhe com requintes de marchetaria, soltei:
“Quero te fazer uma pergunta. Mas você não responde se não quiser, tá?”
Essa era sempre a minha estratégia para perguntas delicadas que eu não sabia se deveriam ser feitas, mas que me alfinetariam os sonhos por noites a fio se eu não as fizesse.
“Pode perguntar.” Nunca conheci alguém que, movido pela mesma curiosidade que me movia, tivesse se recusado a, pelo menos, ouvir a pergunta.
“Por que não deu certo?”
Ela olhou os dedos da mão, inquietos. Depois, os olhos se perderam em busca de memórias escondidas no baú do tempo.
“Ele perdeu o emprego quando o meu caçula tinha dois anos. Depois, não conseguia parar em trabalho nenhum. Acabou se acomodando. Mas eu não podia ficar assim, né? Sustentando homem em casa.”
Comprimi os lábios, umedecendo-os com a língua.
“Mas quando ele ficava em casa, ele fazia o quê?”
“Fazia de tudo: limpava, cozinhava, cuidava das crianças...”
“Então, ele era uma ‘dona de casa’?” Minha pergunta era retórica.
Ela não respondeu de imediato. Tentava imaginar aonde essa conversa a levaria. Eu continuei:
“Pensa comigo: se, antigamente, os homens trabalhavam para garantir o sustento da família enquanto as mulheres ficavam em casa, por que, hoje em dia, não dá pra gente inverter?”
Ela levou o dedo a boca, mordeu o cantinho, enquanto digeria minha ideia. Achei que ia me mandar às favas. Ela se aprumou, levantou a cabeça e me olhou nos olhos:
“Eu bem que podia ter te conhecido uns dez anos atrás, né?”
(Andreia Evaristo)
Crônica publicada no jornal A Notícia, em 23 de janeiro de 2016.
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