domingo, 17 de janeiro de 2016

Doce veneno

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Olá, sou Andreia e sou uma viciada em recuperação. Estou em crise de abstinência. Conto nos dedos os dias, as horas, os minutos e os segundos que meu corpo está sem receber qualquer porção da droga que me mantém cativa.

Foi agora mesmo, nas férias, que decidi que era hora de parar de me drogar. Uma resolução de ano novo – ou coisa parecida. Percebi que meu corpo está ficando velho demais para me entregar aos prazeres momentâneos e passageiros do vício. Entendi que, se não parasse agora, talvez não tivesse outra chance, talvez fosse tarde demais. Marquei o dia no calendário, como se fosse um compromisso importante. Coloquei até uma nota na porta da geladeira – como se me fosse possível esquecer que o dia D, inevitavelmente, chegaria e eu me entregaria, de vontade própria e peito aberto, a uma guerra por mim mesma gerada.


O primeiro dia foi aparentemente tranquilo. A literatura e o cinema em casa me distraíram dos desejos demoníacos. O segundo dia foi um pouco pior: eu me pegava, de tempos em tempos, fantasiando momentos de total entrega ao vício. Mas estava certa de que minha força de vontade precisaria ser maior que meu devaneio. Do terceiro dia em diante, tive que controlar meu corpo: sem que a consciência percebesse, eu caminhava rumo ao descontrole. Como um movimento que, de tão repetitivo, se tornou orgânico, como um andar de bicicleta que – dizem – a gente nunca esquece, ou como um tique nervoso, lá estava eu, à procura de algo no armário. Algo que eu sabia que não estava mais lá, já que tratei de esvaziar todos os meus estoques de droga, para não cair em tentação.

Depois disso, vieram os efeitos colaterais: tonturas, dores de cabeça, vertigem e tremedeira. Mas eu já conhecia isso tudo quando tomei minha resolução. A cada dia, preciso me olhar no espelho e lembrar a mim mesma que eu não nasci viciada, então não preciso morrer assim. Mesmo que eu não tenha certeza de que isso seja mesmo verdade. Quando pequena, mal chegava a casa dos tios, já corria aos armários em busca dessas porcarias. Ou seja, é um vício que me acompanha desde a mais tenra idade. A gente começa com doses pequenas, depois vai aumentando, sem perceber, e, quando dá por si, está entupida até o pescoço de tudo o que não presta.

Já tentei cortar aos poucos, mas comigo só funciona tratamento de choque. Assim, de uma vez, cortei glúten, lactose e todos os carboidratos: arroz, feijão, raízes, trigo... Ainda não cortei os pulsos, mas aquela corda de varal anda me parecendo uma boa alternativa para me livrar da tortura. Para quem desconhece o vício, talvez eu esteja parecendo um pouco exagerada. Mas foi justamente essa minha vida de exageros gastronômicos que me empurraram nessa jornada maldita rumo à obesidade. Hei de ser mais forte: um dia de cada vez e, num futuro próximo, serei uma pessoa liberta, em nome do cuscuz!

(Andreia Evaristo)
Crônica publicada em 16 de janeiro de 2016, no caderno Anexo do jornal A Notícia.

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