quarta-feira, 13 de janeiro de 2016

Sobre se pegar – e os valores contidos nas palavras

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É nas pequenas coisas do dia a dia que a gente percebe que o tempo passa e tudo muda – tudo, até mesmo a língua. Entendo que a língua é um mecanismo em constante transformação, mas a mudança não pode ser tão rápida que impeça avós e netos de se comunicarem (ou pais e filhos, numa visão ainda mais pessimista).

Imagine a cena: dois alunos entram na minha sala para me atualizar das coisas da escola. Em geral, é nessas visitas não planejadas que eu fico sabendo de todas as coisas que me possam ser úteis durante o ano letivo. Conversa vai, conversa vem, um dos alunos me sai com essa:

“Mas tu sabe, né, Deinha, que o João e a Maria se pegaram ontem, na saída da aula.”

Já imagino a cena formada em minha mente: João, um garoto grande, com uma boa vantagem em força e musculatura, lascando a mão na pobre da Maria que, seja lá o que tenha feito, não merecia apanhar.

“E a Maria se machucou?”

Os dois alunos se olham e, menos de dois segundos depois, caem na risada.

“Não é esse ‘se pegar’, professora. É se pegar de outro jeito.”

Gente, não façam isso com essa titia que lhes fala! Sou do tempo que assistir Te pego lá fora era a diversão da Sessão da Tarde, do tempo em que não existia internet livre em casa, não existia Netflix – e pegar alguém era, sempre, sinônimo de briga.

Hoje em dia, não. Hoje pegar alguém é como escolher um prato no cardápio, escolher a comida no buffet, escolher um objeto na vitrine ou na prateleira da loja: você olha, escolhe com mais ou menos critérios e pega, ou seja, usufrue da sua escolha. Depois, exatamente como faz com a comida ou com os objetos que compra e não quer mais, lança fora. Às vezes, o descarte é no lixo, para nunca mais querer. Às vezes, você troca com alguém, ou faz uma doação.

Não é apenas uma mudança de palavra. Palavras são objetos mágicos, carregados de significados e valores. Você há de convir comigo, caro leitor, que pegar alguém não pode ser algo bom.

Você pega, mas não se apega. E de tanto pegar, se esquece que está lidando com pessoas, que têm sentimentos; que você não se apega, mas não pode dizer o mesmo do outro. E as relações vão se tornando cada vez mais descartáveis, os momentos mais fúteis, a vida mais oca.

Pelo menos, antigamente, quando alguém pegava alguém, havia um sentimento envolvido.

(Andreia Evaristo)
Crônica publicada no caderno Anexo, do jornal A Notícia, no dia 09 de janeiro de 2016.

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