O dia
amanheceu nublado. O mormaço arrancou as roupas compridas das pessoas e os
sapatos fechados que quem podia se dar a esse luxo. As roupas foram para o
varal, o cachorro ganhou um banho de mangueira. Não era exatamente o que se
esperava para a véspera do início da primavera, mas pelo menos não estava frio
e chovendo como alguns dias antes.
Dia mundial
sem carro, disse a moça na rádio. Pelas ruas, ao contrário do que se esperaria
na cidade das bicicletas, carros, motos e outros veículos motorizados
acotovelam-se numa velocidade surpreendente. Não posso nem julgar: nessa pressa
obrigatória da modernidade, a gente se obriga a motorizar a vida ou nunca dá
tempo de chegar a tempo. É um paradoxo: tempo é artigo de luxo que se esbanja
nos engarrafamentos.
Paro no
sinal. Cruza a minha frente uma bicicleta. Nela, a moça vai, toda cheia de
estilo, com a camisa colorida e longa chacolhando com o vento, pedalando vida
afora. Livre e leve, como uma borboleta. Talvez ela tenha saído do casulo antes
da primavera, talvez já tenha passado por outras primaveras.
Ela se vai e me
distraio com a cena. Estamos presos uns atrás dos outros, sempre atucanados com
mil e uma preocupações, levando nossas vidas regradas pela rotina. A buzina do
carro de trás me alerta que o sinal já abriu. Acelero o carro e dobro outra
esquina. A moça mais uma vez me ultrapassa com suas asas coloridas esvoaçantes.
Mais uma vez, a bicicleta ganha mais rapidamente os espaços que os carros não
conseguem, porque o trânsito está todo parado. Meus olhos a perdem de vista.
No fim do
dia, saio do congestionamento e tomo meu rumo. No bairro, é tudo mais tranquilo
que no centro. Um perfume de jasmim me inunda o carro e abro mais as janelas,
para que o cheiro remexa em mim as lembranças de infância, da alegria dos dias
de sol que estão por vir. Procuro pelas flores. Sorrio ao ver duas borboletas,
voando em círculos, como se dançassem um dueto. Aos poucos, mais borboletas se
juntam a elas, numa coreografia quase ensaiada. Num estalo, entendo a lição da natureza.
Será que nós, motoristas estressados, não seríamos mais felizes se nos
libertássemos dos motores e nos juntássemos à menina-borboleta em sua
bicicleta?
(Andreia Evaristo)
Nenhum comentário :
Postar um comentário