sexta-feira, 16 de outubro de 2015

Como a garça

cronica literaria literatura joinville escritor joinvilense escritora poesia prosa

Avenida Beira-Rio. Hora do rush. Trânsito parado. Entre faróis acesos e apagados, porque à aurora ninguém sabe se há real necessidade de manter a luz acesa, levo a mão ao rádio e mudo a estação. Preciso de algo que me distraia dessa vida corrida, dessa urbanidade que me consome tempo e paciência que poderiam ser melhor aproveitados com a leitura de um livro ou na companhia de quem eu amo.

Ao meu lado, pessoas caminhando, colocando o corpo em forma para o verão que não tardará a chegar. Algumas mais compenetradas, focadas no exercício. Outras com menos afinco, mais preocupadas com a conversa do que com as passadas largas. O rio com águas paradas jaz escuro como sua triste situação. É quando ouço alguém bater-me na janela.

A menina, com olhos negros e rasgados, me oferece um cesto artesanal. Seus cabelos lisos, cortados com uma franja reta, reforçam em mim o estereótipo do indígena, aquele aprendido e ensinado na escola, faltando apenas cocar e rosto pintado para a guerra. Mas não é só isso que eu vejo. Eu vejo olhos suplicantes, esperando que eu encontre na bolsa umas notas que possam pagar-lhe pelo produto que ajudará no seu sustento.

Seus pés descalços pisam pedregulhos e mato rasteiro da margem do rio. Encostada a uma estrutura de concreto pintada de branco, na qual o poeta insiste que o andarilho consegue contemplar o que o motorista não pode, a mãe da menina amamenta o filho menor. Mas eu sou motorista e contemplo o que meu vizinho de carro talvez não consiga. O que muda não é a velocidade, é o olhar.

Do nada, uma garça branca emerge da cova por onde o rio corre morto. Branca e pura, em meio a toda aquela podridão, como se não pertencesse àquele lugar – assim como a família índia, que não pertence a essa cidade, que destoa do concreto, do asfalto e dos carros que por ela passam, como se não existisse. Sorrio para a menina e com a mão faço um sinal de que não tenho dinheiro – e não tenho mesmo, nessa paranoia coletiva contra a violência urbana, o cartão substitui as notas.


A menina vai até outro carro, mas o motorista a ignora. O mesmo se repete no veículo seguinte. Assim como a garça, a menina é invisível. O sinal abre, mas nossos olhos continuam fechados.

(Andreia Evaristo)

Publicado no jornal A Notícia, em 12 de setembro de 2015.

Nenhum comentário :

Postar um comentário