Avenida
Beira-Rio. Hora do rush. Trânsito
parado. Entre faróis acesos e apagados, porque à aurora ninguém sabe se há real
necessidade de manter a luz acesa, levo a mão ao rádio e mudo a estação. Preciso
de algo que me distraia dessa vida corrida, dessa urbanidade que me consome
tempo e paciência que poderiam ser melhor aproveitados com a leitura de um
livro ou na companhia de quem eu amo.
Ao meu lado,
pessoas caminhando, colocando o corpo em forma para o verão que não tardará a
chegar. Algumas mais compenetradas, focadas no exercício. Outras com menos
afinco, mais preocupadas com a conversa do que com as passadas largas. O rio com
águas paradas jaz escuro como sua triste situação. É quando ouço alguém
bater-me na janela.
A menina, com
olhos negros e rasgados, me oferece um cesto artesanal. Seus cabelos lisos,
cortados com uma franja reta, reforçam em mim o estereótipo do indígena, aquele
aprendido e ensinado na escola, faltando apenas cocar e rosto pintado para a
guerra. Mas não é só isso que eu vejo. Eu vejo olhos suplicantes, esperando que
eu encontre na bolsa umas notas que possam pagar-lhe pelo produto que ajudará
no seu sustento.
Seus pés
descalços pisam pedregulhos e mato rasteiro da margem do rio. Encostada a uma
estrutura de concreto pintada de branco, na qual o poeta insiste que o
andarilho consegue contemplar o que o motorista não pode, a mãe da menina
amamenta o filho menor. Mas eu sou motorista e contemplo o que meu vizinho de
carro talvez não consiga. O que muda não é a velocidade, é o olhar.
Do nada, uma
garça branca emerge da cova por onde o rio corre morto. Branca e pura, em meio
a toda aquela podridão, como se não pertencesse àquele lugar – assim como a
família índia, que não pertence a essa cidade, que destoa do concreto, do asfalto
e dos carros que por ela passam, como se não existisse. Sorrio para a menina e
com a mão faço um sinal de que não tenho dinheiro – e não tenho mesmo, nessa
paranoia coletiva contra a violência urbana, o cartão substitui as notas.
A menina vai
até outro carro, mas o motorista a ignora. O mesmo se repete no veículo
seguinte. Assim como a garça, a menina é invisível. O sinal abre, mas nossos
olhos continuam fechados.
(Andreia Evaristo)
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