sexta-feira, 20 de novembro de 2020

Ações valem mais que mil palavras

Quando um café não é apenas um café


Estrelas além do tempo

Eu já disse aqui que personagem é ação. A velha máxima dos roteiristas americanos do show, not tell também vale quando estamos falando de livros, de histórias escritas. Mas, para quem está começando (ou para quem acredita que sempre há espaço para aprender), muitas vezes fica difícil entender o que essa regra de ouro significa. Por isso, pensei em trazer hoje um exemplo (das telonas) para exemplificar como isso funciona na prática.

Você já deve ter ouvido falar que um bom escritor quase não usa adjetivos e advérbios, certo? Bem, eu não sou do tipo que acredita em regras na hora de escrever, até porque estamos tratando aqui da escrita literária - e se literatura é arte, a arte não precisa de amarrar. Contudo, também estou no grupo das pessoas que acredita que, para quebrar as regras e subvertê-las, é necessário conhecê-las. Por isso bato tanto na tecla de que um bom escritor precisa conhecer o que dizem os especialistas em narratologia e story telling, de Aristóteles aos nossos contemporâneos.

Para exemplificar, trouxe aqui cenas do filme Estrelas além do tempo - filme lançando em 2016, que traz a história de três mulheres negras que trabalhavam para a Nasa, no auge da corrida espacial, nos anos 1960. O filme é incrível e nos provoca muitas reflexões. Vale muito a pena assistir. O post contém spoilers. Por isso, se você é como eu e acredita que quem faz spoiler merece uma morte lenta e dolorosa prefere ser surpreendido durante a narrativa, sugiro que assista ao filme antes de continuar a ler este post.

Dito isto, vamos às cenas.


Provocando sentimentos


Contar histórias não tem a ver com a história em si, mas sim com os sentimentos que somos capazes de provocar no nosso leitor ou expectador. Assim, um recurso interessante é criar empatia, fazer com que o leitor/expectador se sinta na pele do personagem.

No filme, Katherine Goble é trocada de setor e começa a trabalhar junto com os analistas da Nasa responsáveis pelos cálculos dos foguetes - saída da atmosfera, reentrada, curvatura da trajetória... Além de ser a única mulher (além da secretária da seção), é a única pessoa negra no ambiente - isso num estado americano que ainda previa segregação à época.


Como demonstrar que Katherine sofreu racismo? E como demonstrar como isso a afetava?


Assim que Katherine chegou à sua nova seção na empresa, carregando uma caixa com seus pertences e materiais de trabalho, um dos analistas pegou uma lixeira do chão, colocou-a sobre a caixa que ela carregava e disse: 

"Vocês se esqueceram de limpar essa aqui". 

Nada mal para um primeiro contato com os novos colegas de trabalho, não? Pega de surpresa, ela mal conseguiu completar a frase ao responder:

"Não, eu não..."

Ela correu os olhos ao redor, à procura de um lugar vago. Localizou a única mulher presente local, além dela. Deveria ser a secretária, cabelos arrumados, colar de pérolas, maquiagem impecável. Datilografava com precisão. Dirigiu-se até ela. 

"Oi. Eu sou Katherine Goble, o novo computador que foi destinado pra cá. Gostaria de saber onde posso me sentar." 

Sem tirar os olhos da máquina de escrever, a secretária começou a responder: 

"Você pode usar aquela mesa lá..." Mal seus olhos recaíram sobre Katherine, ela parou de falar, olhou-a de cima a baixo, diminuiu o ritmo da fala e completou: "...lá no fundo."


Essa é a forma que a cena se apresenta no filme e como eu a escreveria se estivesse num dos meus livros. Agora, vamos olhar essa mesma sequência por uma outra ótica.


Mal Katherine chega à sua nova seção de trabalho, é confundida com o pessoal da limpeza por um colega desavisado. Sem reagir, ela se dirige à secretária e pergunta onde pode se sentar. Mesmo que a secretária lhe responda que ela pode se sentar numa mesa ao fundo, Katherine percebe pelo olhar da secretária que ela não é bem-vinda.


Percebem a diferença? Simplesmente contar o que aconteceu não surte o mesmo efeito que mostrar, ação por ação, como as coisas aconteceram. Quando mostramos ao leitor o que houve, quando o inserimos na cena como se ele estivesse lá, ele vivencia com o personagem o que o personagem está vivendo.

Ou seja, se tivéssemos um livro em mãos, não bastaria dizer que Katherine foi mal recebida pelos colegas de trabalho, que a olhavam como se fosse um ser estranho àquele ambiente. É necessário fazer com que o leitor enxergue as intenções dos personagem através de suas ações. Colocar um cesto de lixo sobre uma caixa de pertences pessoais é uma ação que representa uma ideia - a ideia de que uma mulher negra, naquela seção da Nasa, só poderia pertencer à equipe de limpeza. A mudança no ritmo da fala da secretária, unida ao olhar meticuloso que media Katherine de cima a baixo, analisando-a, é uma ação que representa mais do que o descontentamento, mas também que ela não está onde deveria estar, que está invadindo um espaço que não é seu por direito.


Katherine Goble, única mulher e única negra num departamento da Nasa repleto de homens brancos.

A saga de Katherine e o preconceito sofrido por ela continuam por várias cenas durante a narrativa. Todos na seção trabalham muito e à base de café. Quando ela se levanta da mesa para pegar um café, todos os homens, que estavam ocupadíssimos com suas tarefas, param o que estão fazendo, apenas para olhar em sua direção, bocas abertas, olhos arregalados. Ela, que estava numa ação totalmente cotidiana de uma rotina de trabalho, se sente invadida por todos aqueles olhares, talvez se questionando sobre o que estava fazendo de errado. No dia seguinte, ao lado da térmica grande, há uma espécie de bule, menor e menos brilhante, com a etiqueta Colored (que era a inscrição usada para informar que algo era de uso exclusivo para os negros, nos Estados Unidos). Ela vê o bule, olha ao redor e percebe que todos os olhares que estavam nela se desviam, tentando disfarçar o que não tem disfarce. Ela volta a olhar o bule e vira-o, para se servir - é quando percebe que não há café ali e que, se ela quiser café, ela mesma vai precisar fazê-lo.


Aqui, café não é apenas café. Esse foi um signo escolhido para demonstrar que ela não deveria mexer no que não é seu por direito. O direito a estar naquele local de trabalho, a usufruir daquele "combustível" para dar energia para a grande carga de trabalho é um privilégio que uma mulher negra não conquistou. Ou seja, cada ação que um escritor ou roteirista escolhe para seus personagens vai muito além do que uma ação cotidiana poderia significar. É por isso que dizemos que, numa história, nada está lá por acaso.


Além disso, outra cena que choca demais é quando Katherine pergunta à secretária onde fica o banheiro feminino. A secretária responde: "Eu sei lá onde fica o seu banheiro", com ênfase no seu. Katherine sai à busca de um banheiro que possa usar. Mas, para sua surpresa, no prédio onde está trabalhando, não há banheiros para negras. Ela se põe a correr pelos pátios da Nasa, carregando papéis que ela precisa analisar, até chegar à ala oeste (onde antes ela trabalhava), para usar o banheiro feminino destinado às negras. Enquanto usa o banheiro, ela ainda folheia alguns cálculos para poder ganhar tempo.

Essa situação se repete várias vezes. Algumas dessas, o chefe pergunta por ela, mas ninguém sabe informar onde ela está. A secretária diz que ela está no intervalo, mas o chefe se surpreende: "E temos intervalo aqui agora?" A situação se agrava quando Katherine sai para ir ao banheiro e começa a chover. Ela volta à sua seção ensopada, os cachos dos cabelos desmanchados, a roupa pingando, para ser interpelada pelo chefe, que questiona: "Onde você estava? Tenho a impressão que todas as vezes que eu a procuro, você nunca está na sua mesa?" É a gota d'água que faz a sempre gentil Katherine desabafar, em alto e bom tom, que não há banheiros para negras naquela ala da Nasa, que ela precisa caminhar por quase um quilômetro até a ala oeste para usar o banheiro, mas que precisa ir até lá a pé, porque não pode usar as bicicletas. Ela coloca tudo para fora, fala do café que não pode beber junto com os outros, das suas dificuldades, libera todas as suas frustrações naquele momento. Depois se desculpa, coloca suas coisas numa caixa e sai.

O chefe caminha até a mesa do café, compara as duas térmicas. Depois, arranca a etiqueta que diz colored do bule. Na cena seguinte, podemos vê-lo na ala oeste, diante da porta do banheiro feminino para negras com uma marreta na mão. Ele golpeia a placa que diz colored várias vezes, até arrancá-la da parede, enquanto as mulheres negras que trabalham como computadores da Nasa assistem à cena. Por fim, com a placa na mão, ele se põe a caminhar pelo corredor, dizendo: "Aqui na Nasa todas as urinas são da mesma cor. Chega dessa história de banheiros para negros."


O ato de arrancar a etiqueta ou a placa da parede é mais do que uma ação. É um signo. Um símbolo. Não é apenas um rótulo que está sendo arrancado, mas uma tradição horrenda que está sendo descartada no lixo, arrancada a marretadas. Claro, o objetivo por trás da ação não é a preocupação com Katherine ou com o preconceito que ela vem sofrendo, mas sim com a pressa em vencer a corrida espacial contra a Rússia (já que Katherine se mostra uma excelente matemática e com visão que extrapola o senso comum, o que pode ser decisivo para o projeto espacial). Ainda assim, mesmo que pelos motivos errados, alguém decide tomar o curso da história nas mãos e fazer o que precisa ser feito.


Não bastaria dizer que o chefe deu uma bronca nos funcionários, condenando a discriminação que faziam com Katherine. O impacto de um discurso do chefe, por mais inflamado que fosse, não surtiria no público o mesmo efeito, não causaria a mesma reação. Porque em histórias, ações falam mais do que mil palavras.

Eu teria muito mais coisas para falar deste filme maravilhoso, mas não quero desestimular um expectador em potencial. O filme fala por si só, traz protagonistas femininas negras que são exemplos de representatividade e nos faz repensar a sociedade contemporânea e os caminhos que nos trouxeram até aqui. Se você não assistiu ainda, eu recomendo. Muito.

Por fim, gostaria de lembrar que as dicas que trago aqui são apenas uma forma de fazer, não uma fórmula. Há muitas possibilidades a serem exploradas quando contamos uma história. Às vezes, quando queremos apenas situar um leitor numa determinada situação, não é necessário mostrar todo o contexto - basta narrá-lo, de modo mais simples e direto, que alcançamos nosso objetivo. Eu, particularmente, prefiro histórias que sempre me insiram no contexto, que me façam sentir parte da história. Mas isso é uma questão bastante pessoal, né?


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