segunda-feira, 10 de outubro de 2016

Avesso perfeito


Quando menina, sempre observei minha mãe dedicando horas e horas a fios, tecidos e tesouras. O amor em forma de artesanato sempre deixou nossa casa mais bonita, com aquele aconchego que a modernidade conseguiu enterrar quando soterrou mulheres com problemas de quem enfrenta jornadas de trabalho de quarenta horas semanais.



Assim que consegui manusear instrumentos com a destreza necessária, procurei aprender algumas dessas artes, já que a semente artística brotou em minha alma antes mesmo que eu me desse conta de quem eu era de verdade (ainda tenho sérias dúvidas sobre ser ou não ser). Curioso é que, enquanto minha mãe se dedicava ao crochê, à costura e mais raramente ao tricô, eu me aventurava por outros caminhos, tendo às mãos pincéis e tintas, ou agulhas e fios de bordado. As cores sempre me fascinaram! Somente elas são capazes de rejuvenescer paredes envelhecidas e cabelos esbranquiçados, somente elas podem alegrar dias brancos de chuva permanente, desses em que nuvens tocam o chão.

Mais do que técnicas, o artesanato despertou em mim uma peculiaridade própria de artista: a arte de olhar o mundo e ver aquilo que ninguém mais vê.

Eu devia ter uns dez anos, e bordava ponto-cruz numa toalha de rosto. Minha mãe, orgulhosa das prendas de sua menininha – porque para as mães, não importa o quanto nós crescemos: somos sempre pequeninas, com os babadinhos da calcinha aparecendo por baixo da saia do vestido – analisava meu trabalho com olhos sorridentes. Acompanhava ponto a ponto, cruzinha por cruzinha, e via surgir em meio à trama do etamine uma imagem tão perfeita aos seus olhos, que não conseguiu conter um elogio.

Olhei para ela e, sem um pingo de vaidade, virei o tecido do outro lado:

“Mas o avesso não está perfeito.”

Seus olhos maternais não compreenderam por que eu estava preocupada com o avesso do bordado, mas minha alma sabia: não era com a excelência de bordar que eu estava preocupada.

Escrever – ou fazer qualquer outra arte – é ter um olhar diferente sobre a realidade banal. É procurar ranhuras nos calos das mãos do trabalhador. É perceber que as cores dependem dos olhos que as observam. É ver a passeata andando e se preocupar com o furo no sapato do menino pobre. É encontrar um universo inteiro num único verso do poeta. É mudar o foco, a lupa, o microscópio. Fazer arte é ir em busca do avesso perfeito, mesmo que ninguém mais se importe.


(Andreia Evaristo)
Crônica publicada no jornal A Notícia, em 08 de outubro de 2016.

"Avesso perfeito" é também o título do meu livro de crônicas no Wattpad. Vem ler (é gratuito!)

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