domingo, 22 de janeiro de 2017

Personagem é ação

Seus personagens precisam falar por si mesmos


Uma das dicas mais preciosas que eu aprendi sobre a arte de contar histórias nos últimos tempos diz respeito ao personagem. Curiosamente, essa não é uma dica sobre construção de personagem, mas sim de como apresentar seu personagem ao público.


Se não me engano, essa é uma das dicas de Syd Field no Manual do Roteiro (mas posso estar enganada, já que tenho feito muitos cursos e estudado muitos livros ao mesmo tempo). Imagine sua história como um filme ou um episódio de seriado. Não há narrador, certo? Logo, não é possível dizer ao público Minha personagem é feminista ou Meu personagem é medroso. Durante a ação é que o publico vai descobrir como sua personagem é - por isso digo que personagem é ação.

Há um artigo polêmico entre os escritores, no qual Chuck Palahniuk diz que os escritores devem cortar, entre outras coisas, os adjetivos e advérbios. O que ele quer dizer é exatamente isso: adjetivar seus personagens é usar um atalho - e, muitas vezes, um atalho que não leva ao destino correto.

Vejamos:

“Aí está você, cdf!”, anuncia Samanta ao entrar na biblioteca, instantaneamente sendo repreendida pela bibliotecária, a quem ela murmura um pedido de desculpas. Controlando o tom de voz, ela pergunta: “E aí, alguma dica extra para domingo?”
Teodoro levanta do livro os olhos, ajeita os óculos de armação verde.
“Dica? Ter estudado até aqui.” Samanta o encara com aquela cara de quem o chama de engraçadinho, mas Teodoro completa: “Cara, não tem milagre. É o vestibular da Federal: ou você sabe o que está fazendo, ou vai ter de esperar o próximo.”
“Ele tem razão, Sam.”
“Ele sempre tem razão”, ela brinca. “Aliás, quero pedir a tua opinião, cdf.”
Ele a encara como se soubesse que uma bomba está prestes a explodir. Samanta nunca anuncia uma pergunta, a menos que ela seja bombástica.
“Você não concorda comigo que a Rebeca deveria esquecer esse lance de não pecar contra a castidade e liberar logo essa franga?”
Boquiaberta, Rebeca repreende Samanta com os olhos, enquanto pensa onde enfiar sua cara. Se fosse um avestruz, definitivamente, encontraria uma forma de cavar um buraco no chão de concreto da biblioteca e enfiaria sua cabeça nele. Mas Samanta não reconhece seus limites:
“Claro, se ela for dar, que termine primeiro com esse machista, manipulador e galinha que ela chama de namorado. Sim, porque se for dar para aquele ali, melhor ficar virgem mesmo, até quando Deus quiser.”
As bochechas de Teodoro logo ficam vermelhas. Tira os óculos com uma das mãos, enquanto os dedos da outra alisam a linha dos cílios dos dois olhos fechados, como se quisesse limpá-los de alguma coisa. Talvez esteja apenas ganhando tempo, pensando em como responder a uma questão tão delicada e pessoal quanto essa que, nitidamente, pelas expressões de Rebeca, ele sabe que não deveria ter sido feita.
“Então, eu acho que as igrejas funcionam como um mecanismo opressor com essa história de pecado. Ao longo da história, os pecados foram se modificando, de acordo com os valores que a igreja gostaria de desenvolver nos seus fiéis...”
“Mas é a minha fé, Teo. Ninguém deveria interferir nisso!”, Rebeca interrompe.
“Sim, eu já ia chegar nesse ponto.” Ele volta a olhar para Samanta. “De qualquer forma, eu não acho que as pessoas deveriam fazer isso ou aquilo só para agradar os anseios da maioria. Acho que essa decisão cabe apenas à Rebeca.”
“Viu, Sam? Minha fé precisa ser respeitada.”
“Sim”, continua Teodoro, “mas você precisa pensar como um ente autônomo. Se, no futuro, você descobrisse que sua fé é uma mentira, que sua igreja estava apenas manipulando as ações de fiéis como você, você ainda acreditaria que fez a coisa certa em esperar?”

(Invadida – Andreia Evaristo)

No trecho acima, o que podemos inferir sobre os personagens? Qual dos três personagens é um religioso fervoroso e virgem? Qual dos três luta contra o machismo? Qual dos três não frequenta mais a igreja e é, possivelmente, ateísta?

Vamos além: Samanta aprova o namoro de Rebeca, sua melhor amiga? Rebeca é tímida ou extrovertida? Teodoro é um puritano?

Veja bem: seus personagens precisam falar por si próprios com suas ações, não precisam que o narrador fale por eles. Essa é uma das formas utilizadas para seguir a regra de ouro dos escritores americanos show, not tell.

Por que eu disse que os adjetivos são atalhos que podem errar o destino? Hoje em dia, os conceitos estão muito fluidos. Por exemplo: você pode criar uma personagem que defenda a amiga contra o machismo do namorado (como é o caso de Samanta), mas isso não significa que ela faça militância feminista nas redes sociais. Há várias formas de lutar contra o machismo e, ao usar uma definição taxativa dizendo Samanta é feminista, você pode acabar criando na imaginação do leitor a imagem que ele faz do feminismo - que talvez não corresponda às atitudes de Samanta.

Outro caso que posso citar: Anderson é ateu. Ateísmo prevê a crença de que Deus não existe, ou a não crença na existência de Deus. Mas o fato de ser ateu não significa que Anderson não possa acreditar em qualquer outra coisa sobrenatural. Eu tive um aluno, uma vez, que não acreditava na existência de Deus, mas acreditava na existência do diabo. Vê como isso é complexo?

Ao mostrar em cenas, em ações práticas, quem seu personagem é, a chance de o leitor confundir os conceitos é mínima, já que você mostra exatamente quem seu personagem é e o que ele pensa na forma como ele age ou reage perante as situações que se apresentam em sua jornada.

Ah, Deinhah, você está me dizendo que eu não posso colocar no narrador os pensamentos dos meus personagens? 

Não, eu não estou dizendo nada disso. Perceba que estamos falando sobre como apresentar as características dos seus personagens no seu texto - e estou demonstrando uma das formas (o que não significa que seja a única). Diálogos interiores também são uma das formas de usar a regrinha do show, not tell - mas isso merece um post separado.

Não se esqueça do que eu não me canso de repetir: como tudo em literatura, essa não é uma fórmula, é uma forma. Literatura é arte, e as artes não precisam de amarras. Mas eu sou defensora de que, para quebrar as regras, é necessário conhecê-las.



E você, escritor, já parou para pensar nessas questões? Como apresenta seus personagens ao público? Já leu antes o artigo com os conselhos de Chuck Palahniuk? Isso ajudou você ou acabou travando sua escrita?

2 comentários :

  1. Travou minha escrita completamente, hoje em dia, eu nem consigo terminar de escrever um capítulo sem achá-lo um lixo, pois não consigo me expressar bem; e parece-me que é um caminho sem volta, já tentei desfazer o meu jeito de escrever, mas não dá, está amarrado a mim e não solta mais pelo que parece.

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    1. Puxa, que complicado, isso. Já pensou em escrever sem pensar muito? Colocar fones de ouvido e música talvez ajudem a se desligar dos seus pensamentos críticos. Deixe pra pensar nesses detalhes na revisão - pode ajudar.

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