terça-feira, 11 de outubro de 2016

Como um livro mal escrito pode se tornar best-seller

resenha o inferno de gabriel sylvain reynard

Além de formada em Letras, nos últimos tempos, tenho me dedicado com muito afinco aos estudos de teoria literária e às linhas que norteiam a escrita criativa e a arte de contarhistórias. Assim, é inevitável que, ao ler os mais variados gêneros de livros, eu me pegue analisando a forma como os escritores desenvolvem suas histórias – e no que eles acertam, e no que eles erram.

Estou terminando a leitura do livro O inferno de Gabriel, o primeiro de uma saga escrita por Sylvain Reynard. A história traz um romance entre um professor universitário, Gabriel Emerson, um bom vivant cheio de luxúria, pecador assumido, e Julianne Mitchell, uma aluna angelical, inocente e virgem, apaixonada por Gabriel desde a adolescência. O livro é um grande best-seller, mas divide opiniões entre os leitores: há aqueles que o amam, e aqueles que não conseguem sequer terminar a leitura do primeiro capítulo. Mas por que isso acontece?

O livro é narrado em terceira pessoa, com um narrador onisciente e onipresente, do tipo confiável. Ou seja, o narrador está em todos os lugares, e “enxerga” dentro da cabeça de todos os personagens. Não haveria problema algum com a escolha do narrador – já que há tantas outras histórias que possuem o mesmo foco narrativo. Mas algo me incomodou profundamente logo que comecei a leitura de O inferno de Gabriel: o narrador está dentro da cabeça de todos os personagens simultaneamente.

Quando você, escritor, quer utilizar um narrador onipresente e onisciente, a sugestão dada pelos especialistas em contar histórias de sucesso é que você escolha, naquela cena específica, um ponto de vista. Ou seja, o narrador até pode saber o que acontece dentro da mente de todos os personagens mas, na hora de narrar, ele escolhe qual o ponto de vista daquela cena específica.

Em O inferno de Gabriel, o narrador não escolhe um ponto de vista: ele narra tudo ao mesmo tempo na mesma cena. Assim, já no início da história, sabemos que Julia é apaixonada por Gabriel desde o dia em que o conheceu, aos 17 anos, quando ele foi o primeiro cara a pegar em sua mão, a beijá-la, a deitar-se com ela num pomar e a dormir com ela (sem qualquer envolvimento sexual). Ao mesmo tempo, sabemos que Gabriel não faz ideia de quem ela seja, mas que a presença dela em sua sala de aula o incomoda. Sabemos que Paul, colega de sala de Julia, está amorosamente interessado nela, que acha o professor Emerson um babaca, e que se dói com a forma como Gabriel trata Julia, desmerecendo-a. Sabemos que Christa, outra colega da mesma turma, menospreza Julia e quer pegar o professor. Tudo isso é contado ao mesmo tempo, no meio da cena.

É possível que o time de leitores que não consegue dar sequência à leitura do livro após as primeiras cenas se sinta confuso em meio a tantos pensamentos ao mesmo tempo. É possível que essa forma de narrar – que é um tanto incomum, colocando todos os pontos de vista simultâneos – cause estranhamento no leitor. Eu tive essa sensação – além de ficar pensando que nenhum suspense a respeito das reações dos personagens às ações uns dos outros foi guardado para depois, o que acaba “estragando” parte da história. Tudo é resolvido na hora, sem maiores expectativas.

Outra coisa que me desagradou na leitura é o fato de aparecerem muitas coisas desnecessárias, algumas até inverossímeis. Por exemplo, em dado momento da história, Julia recebe um buquê de jacintos roxos, que é deixado do lado de fora do seu prédio, porque ela se recusa a atender ao telefone. Quando o encontra, Julia vai pesquisar na internet se os jacintos roxos têm algum significado específico, para saber se há alguma mensagem subliminar no buquê – e acaba descobrindo que jacintos roxos simbolizam um pedido de perdão. Oi? Me diga você, leitora ou escritora: em que mundo uma mulher recebe um buquê de flores do homem que ama e vai pesquisar na internet se há um significado a mais? Posso afirmar que, em minhas pesquisas por aqui, as mulheres a quem perguntei também acharam a cena muito fora da realidade.

Apesar disso, passado o estranhamento inicial com a forma de narrar (e ignorando pequenos detalhes que me parecem inverossímeis, como essa cena das flores, mas não apenas essa), quando a leitura engrenou, a história me prendeu de tal forma que perdi horas e horas com o livro na mão, sem conseguir largá-lo. E atribuo essa minha aderência como leitora a alguns fatos:

a) Mistério
Chega um momento da história em que o leitor percebe que tanto Julia quanto Gabriel escondem um do outro (e das demais pessoas com quem convivem) segredos a respeito do seu passado. Mas esses segredos não ficam totalmente escondidos: surgem em inquietações diante de situações corriqueiras, ou em pensamentos que remetem a algum trauma, mas sem dar maiores detalhes. São como pequenos flashes, mas a curiosidade de saber do que se trata acaba segurando o leitor grudado nas linhas escritas.

b) Expectativa
Como é de se imaginar, a expectativa para saber se o casal Gabriel e Julia vai ficar junto, se o mundo vai dar um jeito de colocar as coisas no lugar e proporcionar um final feliz também é um dos segredos para manter o leitor preso até o fim do livro. Afinal, grandes histórias de amor que sobreviveram aos tempos são justamente sobre dois amantes apaixonados que, pelos motivos que fossem, eram impedidos de ficar juntos – e todos torcem para que o amor dê certo no fim.

c) Drama muito forte
O mistério que envolve os pensamentos traumáticos de Julia e de Gabriel nos dão, aos poucos, indícios de que eles viveram situações muito difíceis, que acabam prejudicando suas vidas até o momento presente. Esse drama interno muito forte cria uma empatia muito grande por parte do público, afinal, o ser humano tem a tendência a se compadecer com a dor alheia.

Ou seja, apesar de ser um livro mal escrito, com alguns furos de verossimilhança, com um narrador que acaba deixando o leitor zonzo em meio a tantas informações dadas ao mesmo tempo, a história se sustenta pela força do drama. A história em si é tão forte, tão bem amarrada, os personagens tão humanos e tão bem desenvolvidos que, apesar da escrita não ser das melhores, o livro é bom, é cativante, consegue segurar o leitor vidrado na história (mesmo que, em alguns momentos, eu tenha precisado revirar os olhos para a cena). Eu ainda não sei como a história termina (faltam umas cinquenta páginas para eu terminar o livro 1), mas não tenho dúvidas de que não vou sossegar enquanto não conseguir terminar os três livros da saga.

Título: O inferno de Gabriel
Autor: Sylvain Reynard
Gênero: Romance estrangeiro
Editora: Arqueiro
Número de páginas: 511

17 comentários :

  1. É lamentável que se intitulando ser tanta coisa você simplesmente esqueceu de mostrar respeito pelas obras de um escritor e principalmente aos seus leitores (leitores de SR)

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    1. Mariléia, em nenhum momento eu faltei com o respeito ao escritor ou aos seus leitores. O que eu fiz no post foi simplesmente expressar minha opinião. Não acredito que as falhas do livro sejam suficientes para classificá-lo como um livro ruim, muito pelo contrário. O que eu fiz foi apontar, dentro das teorias que tenho estudado, quais os pontos que me fazem pensar que poderia ter sido melhor escrito.
      Isso é uma opinião - e você tem todo o direito de discordar de mim.

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  2. Ao contrário do que consta na "resenha" a trilogia toda é MUITO bem escrita, e muito bem desenvolvida. Todo mundo tem direito de expressar sua opinião, e como deram essa opinião, eu me sinto no direito de expressar a minha, pois o livro Inferno de Gabriel é maravilhoso, e todos que leem até o final se encantam com os personagens. Então não se deixem levar por qualquer "resenha", aconselho a todos lerem e tirarem suas próprias conclusões.

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    1. Concordo com você, Le. Somente lendo a obra é possível chegar a uma conclusão a seu respeito. Você acha que foi bem escrita, eu discordo de você - apesar de estar achando a história muito envolvente, mesmo com os erros apontados.
      Só não compreendo por que a palavra resenha está entre aspas em seu comentário. O fato de ela não ser 100% positiva e de você discordar do meu ponto de vista não muda o gênero do texto que eu escrevi.

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    2. O fato das aspas, foi devido ao fato que eu não achei uma boa resenha, não por ser contrária da minha opinião. Acho que você devia estudar mais um pouco, pois a diferença dessa trilogia para as outras é o fato que é barrada em 3 pessoa, fato esse, que faz algumas pessoas não entenderem a história e saírem por aí fazendo "resenhas" desse tipo. Afinal a maioria só gosta de histórias simples e de escrita barrada em 1 pessoa. E sinceramente, já li resenhas negativas a respeito dessa trilogia, mas que foram MUITO melhores que essa.

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    3. Le, ainda acho que você não compreendeu que eu gostei do livro. Isso está claro no fim da resenha. O fato de eu encontrar, dentro daquilo que eu estudei e acredito, divergências, não é o que torna uma história boa ou ruim. Minha resenha tem a ver com a estrutura do texto - não é feita para leitores do livro, e sim para outros escritores.
      Diferente do que você acredita, eu conheço a maioria dos tipos de narradores (aqui mesmo neste blog você vai encontrar um post sobre 11 tipos de narradores, que não se limitam à 1ª ou 3ª pessoa) e não tenho problema algum com qualquer um desses narradores. Não é sobre o foco narrativo do livro minha crítica, mas à forma como o escritor se utilizou do ponto-de-vista dentro do foco narrativo escolhido.
      Quanto a você ter lido resenhas melhores que a minha, aceito sua opinião. Assim como eu, você tem o direito de gostar ou não do que lê.

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  3. Só porque você usa palavras complexas não quer dizer que seu nível de inteligência é alto o suficiente para entender uma obra de arte como "O Inferno de Gabriel". Só pra pessoas top mesmo ;)

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    1. Este comentário foi removido pelo autor.

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    2. "Quem não pode atacar os argumentos, ataca o argumentador." (Paul Valery)

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  4. Gostaria de discordar de todos até agora. A resenha foi muito bem escrita e de modo nenhum vi suas observações negativas sobre o livro como desmotivadoras de sua leitura. Muito pelo contrário. Se fosse o meu tipo de livro eu com certeza leria a obra depois dessa reseha.

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    1. Bem escrita? Claramente você não procurou outras resenhas dessa trilogia.

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    2. Obrigada, Brunna.
      Fico feliz em saber que minhas críticas foram compreendidas e, ainda assim, consegui fazê-la se interessar pela obra (e que leria o livro depois da resenha).

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  5. Resenha maravilhosa =D
    Você apontou vários pontos negativos e positivos e isso é super bacana :)
    Continue com esse trabalho incrível.
    Eu não leria o livro, pois não é meu estilo, mas mesmo assim, fiquei curiosa :3
    E sabe que sua resenha é ótima para escritores também, porque aponta falhas comuns em vários textos.
    Um beijão
    http://profissao-escritor.blogspot.com.br/

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    1. Muito obrigada, Gi.
      É importante, para mim, saber que meu objetivo foi alcançado, de apontar particularidades que possam ajudar, também, outros escritores, além de poder ajudar outros leitores a se tornarem um pouco mais críticos em relação às suas leituras.
      Beijo grande.

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  6. Oi, Andreia!
    Encontrei teu blog por acaso no Facebook. Quero te parabenizar. Gostei muito dos posts que li. Tem conteúdos interessantíssimos para autores inciantes e com uma linguagem acessível, o que é ótimo.
    Sobre a resenha: Gostei de como você a estruturou, mostrando os pontos fracos e fortes do livro. E com exemplos. Eu não li o livro, mas pelos aspectos que você destacou, não é o tipo de livro que me agrada. Nem a capa eu gosto.

    Sobre os comentários da Mariléia e Le Ferreira: acho que elas precisam estudar estratégias de compreensão leitora. Talvez assim elas consigam entender esse texto. Talvez elas nem perceberam que o teu blog tem um viés mais de dicas de escrita criativa, que por isso tua análise tem uma pegada mais teórica, em questões mais estruturais da obra.
    A grande maioria dos leitores focam somente no romance entre os protagonistas e acabam perdendo outros aspectos interessante do livro. Não sei se você tem percebido isso também.

    Beijos!

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    1. Oi, Nilda
      Antes de qualquer coisa, muito obrigada. Fico feliz que tenha encontrado conteúdo que lhe interessasse por aqui. Meu objetivo é ajudar, sempre e cada vez mais, a profissionalizar o ofício de ser escritor e valorizar a escrita - principalmente a nacional.

      Concordo com você. Muitos leitores se envolvem com a história, com a trama, com o romance e as dores dos personagens - e não, não há nada de errado com isso. Aliás, eu vivo dizendo que lemos histórias para nos emocionarmos, não para saber mais uma história. E sim, esta resenha, assim como o blog, tem o foco em dicas para escritores. A princípio, me senti mal compreendida com os comentários negativos. Mas, conforme outras pessoas foram comentando a resenha, vi que fui clara no que eu quis expôr e que, provavelmente, as duas leitoras que se sentiram ofendidas com minha resenha o fizeram por gostarem demais do livro e do escritor em questão.
      Muito obrigada por estar por aqui, obrigada por comentar e seja sempre bem-vinda.
      Beijo grande.

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