segunda-feira, 13 de junho de 2016

Como escolher o narrador da sua história

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Levando em conta os cinco elementos essenciais da narrativa, o narrador é um dos itens que merece destaque e atenção por parte do escritor. Escolher corretamente o narrador pode alavancar uma ótima história – ou acabar rebaixando algo que poderia ser grandioso.
Sei que você aprendeu na escola que narrador pode ser em primeira, segunda ou terceirapessoa, mas, na prática, a coisa é um pouco mais complexa que isso. É preciso considerar quem narra, para quem narra, qual a afinidade e o envolvimento do narrador com a história, quais as facetas que ele conhece do que está contando, entre outros fatores.

Segundo a tipologia de Norman Friedman, os narradores podem ser:


1. Narrador onisciente neutro – é aquele narrador que sabe de tudo, está dentro da cabeça de todos os personagens, conhece todas as facetas da história, além dos limites de tempo e espaço. Mas, como um jornalista a narrar uma notícia, esse narrador não emite sua opinião: ele se limita aos fatos – eles devem falar por si.

Quando pai e filho entraram pela porta da escola, com cara de poucos amigos, a curiosidade se instalou entre os funcionários. Aquele era o garoto que havia gazeado aula pela manhã. Aquele era o pai que tinha recebido um telefonema da coordenadora, avisando-lhe do fato. Entraram meio tímidos. Foram recebidos na secretaria, pela coordenação. O pai, diferente de tantos outros pais que visitam a escola, não apoiava as atitudes do filho, nem tentava jogar a culpa nos funcionários.
Com os olhos avermelhados, o pai estendeu a mão em direção da coordenadora. Havia sangue em meio a marcas de unhadas.

(Andreia Evaristo – Legítima defesa – em: Chiclete pra guardar pra depois)

Nesse trecho, o narrador se limita a narrar - sem interferência, sem juízo de valor, se se intrometer na história.

2. Narrador onisciente intruso – também conhece todos os pontos da história, todos os personagens (inclusive seus pensamentos e sentimentos). Além disso, ele se mete no que narra: dá palpites, opina sobre os fatos, faz discursos de moral e julgamentos de valores.

Agora contarei a história do relógio de ouro. Era um grande cronômetro, inteiramente novo, preso a uma elegante cadeia. Luís Negreiros tinha muita razão em ficar boquiaberto quando viu o relógio em casa, um relógio que não era dele, nem podia ser de sua mulher. Seria ilusão dos seus olhos? Não era; o relógio ali estava sobre uma mesa da alcova, a olhar para ele, talvez tão espantado, como ele, do lugar e da situação.
Clarinha não estava na alcova quando Luís Negreiros ali entrou. Deixou-se ficar na sala, a folhear um romance, sem corresponder muito nem pouco ao ósculo com que o marido a cumprimentou logo à entrada. Era uma bonita moça esta Clarinha, ainda que um tanto pálida, ou por isso mesmo. Era pequena e delgada; de longe parecia uma criança; de perto, quem lhe examinasse os olhos, veria bem que era mulher como poucas. Estava molemente reclinada no sofá, com o livro aberto, e os olhos no livro, os olhos apenas, porque o pensamento, não tenho certeza se estava no livro, se em outra parte. Em todo o caso parecia alheia ao marido e ao relógio.

(Machado de Assis – O relógio de ouro)

Os trechos grafados em vermelho representam juízo de valor do narrador do texto, dando razão a Luís Negreiros, julgando-o espantado, achando Clarinha uma moça bonita e deduzindo que seus pensamentos talvez não estivessem no livro. Note: é como uma pessoa a fazer uma fofoca – ela não se limita a retratar o que viu, ela interfere na história que conta, dando o seu ponto de vista.
Caso você escolha esse tipo de narrador para a sua história, seria interessante pensar nele como se fosse um personagem. Quem é esse narrador? É homem ou mulher? Jovem ou velho? Conservador ou liberal? Essa descrição detalhada do seu narrador ajuda a construir quais valores serão expostos em sua fala.

3. Narrador protagonista – é o personagem principal da história, narrando-a a partir do seu próprio ponto-de-vista. Está limitado aos seus pensamentos e percepções do mundo, não consegue acompanhar o que acontece quando ele não está presente em cena.

Há um único espelho em minha casa. Fica atrás de um painel corrediço no corredor do andar de cima. Nossa facção permite que eu fique diante dele no segundo dia do mês, a cada três meses, no dia em que minha mãe corta meu cabelo.
Sento-me em um banco e minha mãe permanece em pé atrás de mim com a tesoura, aparando. Os fios caem no chão, formando um anel loiro e sem graça.
Ao terminar, ela afasta os cabelos do meu rosto e os amarra em um nó. Reparo em como parece calma e em como está concentrada. Ela tem muita experiência na arte de perder-se em pensamentos. Não posso dizer o mesmo de mim.
Espio minha imagem no espelho quando ela não está prestando atenção, não por vaidade, mas por curiosidade. Um rosto pode mudar muito em três meses. No meu reflexo, vejo um rosto estreito, olhos grandes e redondos e um longo e delgado nariz. Ainda pareço uma criança, apesar de ter completado dezesseis anos em algum momento dos últimos meses. As outras facções celebram aniversários, mas nós, não. Seria um ato de autocomplacência.
– Pronto – diz ela, ao prender o nó com um grampo. Seus olhos surpreendem os meus no espelho. É tarde demais para desviar o olhar, mas em vez de me censurar ela sorri, encarando nosso reflexo. Franzo levemente as sobrancelhas. Por que ela não me repreendeu?
– Hoje é o dia, afinal – diz ela.
– Sim – respondo.
– Você está nervosa?
Por um momento, encaro meus olhos no espelho. Hoje é o dia do teste de aptidão que me mostrará a qual das cinco facções eu pertenço. E amanhã, na Cerimônia de Escolha, escolherei uma; escolherei o caminho que vou trilhar pelo resto da minha vida; escolherei se devo ficar com minha família ou abandoná-la.
– Não – digo. – Os testes não precisam mudar nossas escolhas.
– Certo. – Ela sorri. – Vamos tomar o café da manhã.
– Obrigada. Por cortar meu cabelo.

(Veronica Roth – Divergente)

Esse trecho é a primeira cena do livro Divergente. A protagonista do livro, Beatrice Prior, surge nesta primeira cena, dando ao leitor pistas sobre quem ela é, onde e como vive, como é o mundo onde ela se encontra e qual será o desafio com o qual ela terá de lidar.
Narradores protagonistas conseguem uma identificação com o leitor muito rápida, e muito profunda. O leitor se sente próximo do personagem que narra, sente-se como se estivesse dentro da história – ou acompanhando-a junto de alguém que está dentro dela. Dos narradores personagens, o mais comum é o narrador protagonista.
Há quem diga que histórias narradas em primeira pessoa com narrador protagonista são sempre um spoiler pronto porque, se é o protagonista quem narra, ele não pode morrer, se não a história acaba. Isso não é, necessariamente, verdade. Se você narra em primeira pessoa usando os verbos no presente, é como se a história acontecesse em tempo real - e o narrador pode morrer, sim. Nós, que vivemos o pós-modernismo, temos que ter em mente que muitas regras na literatura foram feitas para serem quebradas. Então, podemos ver histórias com mais de um narrador em primeira pessoa, podemos ver histórias mesclando primeira e terceira pessoa, histórias com narrador em segunda pessoa... Depois do Modernismo, tudo é permitido.

4. Eu como testemunha – o narrador testemunha é como alguém que dá um depoimento: é alguém que presenciou uma cena, uma história, e está contando a sua versão dos fatos. Normalmente, é um personagem secundário e, assim como narrador-protagonista, sua narração é sempre limitada ao seu próprio ponto de vista, já que ele não tem acesso às ideias e aos pensamentos dos outros personagens.

Isso não podia ficar assim. Toninho não perdoava ninguém. Era Ema, Alícia, Daniel, eu... Qualquer um que cometesse um deslize, logo virava meme. Se isso servisse pra gente ficar famoso e ganhar dinheiro, pelo menos...
Eu precisava de um plano pra acabar com a alegria dele. O absorvente na janela do quarto não surtiu efeito – deve ter sido muito engraçada a cara dele ao se deparar com aquela coisa ensaguentada grudada no vidro, mas, como ele não sabia de onde vinha, não contava como vingança.
Era um dia normal, de aula. Os professores não andavam muito satisfeitos com o comportamento do Toninho – as pessoas diziam que a mãe dele já tinha sido chamada algumas vezes pra conversar com a dona Jussara e, se as coisas não melhorassem, ele provavelmente precisaria arrumar uma vaga em outra escola.

(Andreia Evaristo – Eita! Deu treta)

Eita! Deu treta tem mais de um protagonista. Nessa cena, Humberto está se referindo a algo que aconteceu com Ema, uma das protagonistas. Note que ele se coloca na posição de alguém que observou in loco a cena.
Veja: Humberto é um dos protagonistas também. Mas há cenas em que ele atua como dinâmico ou oponente, ou seja, não há protagonismo. É interessante perceber que você pode mesclar os diferentes tipos de narrador na sua história.

5. Narrador com onisciência seletiva – é o narrador do discurso indireto-livre, quando se resume ao ponto de vista de um só personagem. Ele sabe de tudo o que se passa com o personagem, e os pensamentos e falas do personagem misturam-se ao próprio narrador, ou seja, a informação filtrada pela mente do personagem. Logo, este narrador não é confiável. Normalmente, a narrativa é identificada apenas com o mundo do protagonista.

Enquanto não chegou à porta do edifício, parecia à beira de um desastre. Correu com a rede até o elevador, sua alma batia-lhe no peito — o que sucedia? A piedade pelo cego era tão violenta como uma ânsia, mas o mundo lhe parecia seu, sujo, perecível, seu. Abriu a porta de casa. A sala era grande, quadrada, as maçanetas brilhavam limpas, os vidros da janela brilhavam, a lâmpada brilhava — que nova terra era essa? E por um instante a vida sadia que levara até agora pareceu-lhe um modo moralmente louco de viver. O menino que se aproximou correndo era um ser de pernas compridas e rosto igual ao seu, que corria e a abraçava. Apertou-o com força, com espanto. Protegia-se trêmula. Porque a vida era periclitante. Ela amava o mundo, amava o que fora criado — amava com nojo. Do mesmo modo como sempre fora fascinada pelas ostras, com aquele vago sentimento de asco que a aproximação da verdade lhe provocava, avisando-a. Abraçou o filho, quase a ponto de machucá-lo. Como se soubesse de um mal — o cego ou o belo Jardim Botânico? — agarrava-se a ele, a quem queria acima de tudo. Fora atingida pelo demônio da fé. A vida é horrível, disse-lhe baixo, faminta. O que faria se seguisse o chamado do cego? Iria sozinha... Havia lugares pobres e ricos que precisavam dela. Ela precisava deles... (...) Afastou-o, olhou aquele rosto, seu coração crispou-se. Não deixe mamãe te esquecer, disse-lhe. A criança mal sentiu o abraço se afrouxar, escapou e correu até a porta do quarto, de onde olhou-a mais segura. Era o pior olhar que jamais recebera. O sangue subiu-lhe ao rosto, esquentando-o.

(Clarice Lispector – Amor – em: Laços de Família)

O discurso indireto da mulher, protagonista do texto, está grafado em rosa. Os trechos destacados mesclam-se ao narrador, e muitas vezes não podemos separar o que é a fala do narrador do que é fala da mulher, ou do seu pensamento. Ela pergunta, ela mesma responde, ela pensa e ela fala - tudo mesclado à narração.

6. Narrador com onisciência seletiva múltipla – aqui também o narrador é do discurso indireto-livre, sob a perspectiva de cada um dos personagens: valem as mesmas regras do narrador com onisciência seletiva, mas aqui ela ocorre de forma múltipla, não apenas com o protagonista – isso acontece com mais um personagem ao longo da trama. Veja bem: a cada personagem em foco, o narrador está imerso em seus valores, mas é limitado aos pensamentos e personagens de cada cena individualmente.

Em que estariam pensando?, zumbiu sinhá Vitória. Fabiano estranhou a pergunta e rosnou uma objeção. Menino é bicho miúdo, não pensa. Mas sinhá Vitória renovou a pergunta – e a certeza do marido abalou-se. Ela devia ter razão. Tinha sempre razão. Agora desejava saber que iriam fazer os filhos quando crescessem.
– Vaquejar, opinou Fabiano.

(Graciliano Ramos – Vidas Secas)

Os trechos grafados em rosa correspondem a falas e pensamentos de sinhá Vitória, que foram incorporados na fala do narrador. O mesmo acontece com os trechos destacados em azul, sendo estes de Fabiano, seu marido. É nessa mistura, quando não se sabe onde termina a fala do narrador e onde começa a fala do personagem que o discurso indireto-livre se faz presente.

7. Narração por modo dramático – é como se não houvesse autor, narrador, e eliminam-se também os estados mentais. As informações são limitadas ao que os personagens falam (exatamente como no teatro). Como o texto acaba se tornando uma sucessão de cenas dramáticas, é melhor usar em narrativas curtas, como o conto, se não, corre-se o risco de transformar seu texto num roteiro de teatro ou filme.

– Pai...
– Hmmm?
– Como é o feminino de sexo?
– O quê?
– O feminino de sexo.
– Não tem.
– Sexo não tem feminino?
– Não.
– Só tem sexo masculino?
– É. Quer dizer, não. Existem dois sexos. Masculino e feminino.
– E como é o feminino de sexo?
– Não tem feminino. Sexo é sempre masculino.
– Mas tu mesmo disse que tem sexo masculino e feminino.
– O sexo pode ser masculino ou feminino. A palavra "sexo" é masculina. O sexo masculino, o sexo feminino.
– Não devia ser “a sexa”?
– Não.
– Por que não?
– Porque não! Desculpe. Porque não. “Sexo” é sempre masculino.
– O sexo da mulher é masculino?
– É. Não! O sexo da mulher é feminino.
– E como é o feminino?
– Sexo mesmo. Igual ao do homem.
– O sexo da mulher é igual ao do homem?
– É. Quer dizer... Olha aqui. Tem o sexo masculino e o sexo feminino, certo?
– Certo.
– São duas coisas diferentes.
– Então como é o feminino de sexo?
– É igual ao masculino.
– Mas não são diferentes?
– Não. Ou, são! Mas a palavra é a mesma. Muda o sexo, mas não muda a palavra.
– Mas então não muda o sexo. É sempre masculino.
– A palavra é masculina.
– Não. “A palavra” é feminino. Se fosse masculina seria “o pal...”
– Chega! Vai brincar, vai.
O garoto sai e a mãe entra. O pai comenta:
– Temos que ficar de olho nesse guri...
– Por quê?
– Ele só pensa em gramática.

(Luís Fernando Veríssimo – SexaCrônicas para ler na escola)

Luis Fernando Verissimo tem alguns textos que são narrados desse modo, quase sem interferência nenhuma de um narrador, exceto por uma ou outra linha. Funciona muito bem nesses casos.

8. Câmera – não há narrador, as cenas são transmitidas como flashes da realidade, como se fossem captadas realmente por uma câmera. É um narrador utilizado em textos experimentais.


A nomenclatura desse tipo foi formulada a partir do romance Good Bye to Berlin um romance-reportagem de Isherwood (1945) onde o próprio narrador em uma das cenas diz: “Eu sou uma câmera”. O que se pode tirar desse narrador são as próprias características de uma câmera.

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