segunda-feira, 30 de maio de 2016

A arma de Tchekov e deus ex-machina

dicas para escritores como escrever um livro

Elemento livre, elemento vinculado e soluções caídas de paraquedas na literatura


Anton Tchekov foi um grande escritor russo, principalmente contista e dramaturgo, que até hoje é reconhecido por seu estilo conciso e objetivo. Além de dos textos literários, Tchekov deixou alguns escritos com dicas para outros escritores. Hoje, especificamente, vamos falar da Arma de Tchekov (elemento vinculado), mas também de elemento livre e deus ex-machina.

“Se você diz no primeiro ato que um rifle está pendurado na parede, no segundo ou terceiro atos ele deve absolutamente ser disparado. Se não irá ser usado, não deveria estar lá.” (Anton Tchekov)

Isso nos leva a definir aqui dois tipos de elementos que vão aparecer num texto narrativo: o elemento livre e o elemento vinculado.



  1. Elemento livre:

Em qualquer história, há vários elementos que aparecem pela trama que não têm qualquer pretensão no enredo, especificamente. Pode ser um diário, que é usado num texto com o único objetivo de caracterizar o personagem como alguém que se sente solitário e que precisa expressar seus sentimentos num caderno, talvez porque, além de sozinho, seja desconfiado das outras pessoas. Pode ser um ursinho de pelúcia, que o personagem ganhou da madrinha quando era criança e, desde que ela faleceu, ele não consegue evitar dormir com o bichinho.

Pode ser algo usado para apresentar a situação, o mundo em que o personagem vive. Em Harry Potter, há uma série de descrições de Hogwarts – da mesa farta, dos castiçais que flutuam pelo ar, do teto encantado que exibe um céu estrelado. O único objetivo dessas cenas é de mostrar ao leitor em que situação o personagem – no caso, Harry – se encontra.


  1. Elemento vinculado:

Já o elemento vinculado se refere exatamente ao que Tchekov define em sua “arma”. Quando um escritor dá ênfase a um determinado objeto, normalmente o leitor vai esperar que esse objeto tenha alguma importância na trama. Assim, se há uma arma pendurada na parede, ela deve ser atirada contra alguém em algum momento. De outro modo, por que haveria uma arma lá?

Em Harry Potter e o prisioneiro de Azkaban, Hermione recebe de Dumbledore um vira-tempo, para ajudar a menina a frequentar mais de uma aula ao mesmo tempo (uma vez que o objeto a faz voltar no tempo). Parece um elemento livre, num primeiro momento, já que serve para caracterizar Hermione como alguém que tem fome de aprender, e a situa num momento em que ela precisaria escolher quais aulas frequentar e teria de, inevitavelmente, deixar algumas aulas de fora. Mas o objeto se torna fundamental na resolução da trama.

No filme Sinais, Bo, a menininha loira, filha do do pastor Graham Hess (Mel Gibson) passa o filme todo reclamando que a água que lhe dão de beber está contaminada. Por isso, ela vai deixando copos com água espalhados pela casa. Aparentemente, poderia ser um elemento livre, apenas para caracterizar a menina com algum tipo de TOC (transtorno obsessivo compulsivo), ou uma paranoia com relação à pureza da água. Contudo, no fim do filme, a água dos copos espalhados pela casa é justamente a chave para resolver o problema da invasão alienígena que a terra está sofrendo.

É preciso cuidar com a atenção que se dá a um elemento livre, para que o leitor/expectador não se frustre. No filme Garota exemplar (no livro, não sei dizer), quando Nick, o marido da moça desaparecida, chega em casa, há um gato do lado de fora da porta, que foi arrombada. Ele coloca o gato para dentro, alimenta-o. O mesmo gato volta a aparecer em pelo menos três ou quatro cenas. Ou seja, é dada uma certa atenção ao gato, o que me fez acreditar que se tratava de um elemento vinculado. Mas não. Não há qualquer relevância para a aparição insistente do gato em várias cenas do filme. É diferente do gato Buttercup, de Jogos Vorazes. Ele aparece várias vezes, há uma notável antipatia de Katniss por ele e, quando a família Everdeen está no subsolo do Treze, Prim quase acaba morta porque, durante uma ação de contigência da população, ela voltou aos andares superiores em busca de Buttercup – e Katniss pode comprovar a lealdade de Gale em relação a ela e sua família, visto que é ele quem acompanha a menina, mesmo sabendo que ambos corriam risco de morrer.


  1. Deus ex-machina

Se você colocar seus personagens diante de um problema muito grave, uma situação quase impossível de se resolver, e miraculosamente um objeto cair do céu, ou surgir alguém ou alguma criatura que não tenha sido citada antes, o leitor vai se sentir enganado. Isso se chama deus ex-machina. É uma referência ao teatro grego, quando o herói se encontrava diante de um perigo de vida ou morte e surgia um deus grego (um ator movido pelos ares com o auxílio de uma máquina) que salvava a vida do herói e resolvia o conflito da história.

Os elementos vinculados – a arma de Tchekov – serve justamente para que o leitor/expectador não se sinta enganado por você. Como você já citou o objeto antes, como já fez com que o personagem interagisse com aquele objeto em mais de uma cena, você criou uma situação propícia para que, quando a situação exija, o personagem possa usar seu/sua amuleto/espada/arma/geringonça para ajudá-lo a sair da roubada em que você o colocou. 

4 comentários :

  1. Obrigado! Excelentes dicas! Embora não tivesse conhecimento consciente destes elementos na narrativa, como passei a ter agora, já fazia uso deles no enredo de meu livro que estou editando. Muito útil sua explicação.

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    1. Tem muita coisa que a gente faz por intuição, José Roberto. Um bom escritor nunca deve se esquecer de seguir sua intuição - é a nossa melhor ferramenta.
      Porém, ter consciência dos mecanismos da escrita ajuda a gente a não cair em nenhuma armadilha.

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  2. Caramba, Andréia Evaristo, gostei demais das dicas, Anton Tchekov é o cara. Quanto mais eu leio este tipo de texto mais percebo o quanto minha narrativa pode melhorar. Acabei de ler "Sem trama e sem final - 99 conselhos de escrita" e achei sensacional a maneira concisa de escrever de Tchekov. Valeu Andreia

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    1. Concordo, Sebastião. Tchekov não recebeu à toa a fama de um dos melhores escritores do mundo. "Sem trama e sem final" está na minha lista de próximas aquisições - todos os escritores que eu conheço que já o leram indicam.
      Obrigada pela visita e pelo comentário. Seja sempre bem-vindo.

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