domingo, 21 de fevereiro de 2016

Indiscrição minha

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Mesma rua de sempre, mesmo cruzamento que já apareceu por aqui. O caos e o calor me assolavam a moleira, já que não considerei o calor de Joinville na ansiedade que tomou conta de mim quando eu comprei meu carro no ano passado. Levei em conta preço e mecânica, deixando os opcionais como segunda ordem. Nesses dias de sol estralando mamonas, a voz de meu irmão mais novo ressoa dentro de mim: “Não precisa de ar condicionado? Quando você estiver esturricando feito solo do nordeste, parada no trânsito, a gente argumenta se é mesmo um luxo desnecessário.” É um filho da mãe – da minha mãe, nesse caso.

Parada no sinal vermelho, observo os carros que param na direção contrária, porque o semáforo atrás de mim também está fechado. De dentro de um outro veículo sem ar condicionado, com as janelas escancaradas, analiso a mulher ao volante. Deve ter a minha idade. Mantém as duas mãos fixas no volante, já os olhos fixam ao longe algo que não está lá. Seu rosto, tão vermelho quanto a sinaleira, não consegue esconder o choro que por ali fez passagem. Sou indiscreta, eu sei, minha mãe me ensinou que não é educado ficar encarando pessoas que eu não conheço, ainda mais se estiverem vulneráveis. Mas não consigo evitar: é mais forte que eu, é como um ímã a puxar meus olhos.


Meu pensamento, criativo como anda ultimamente, se rende às invencionices do lado direito do meu cérebro. Será que morreu alguém? Um grande amor do passado, impossível e jamais esquecido, talvez? Ou um filho, que qualquer pai ou mãe há de concordar que é a perda mais dolorosa de todas, contrariando a ordem natural das coisas. Terá sido chifre, um caso melodramático de novela mexicana, em que a mulher chega em casa fora de hora e flagra o marido nos braços da melhor amiga? Problemas no emprego? Andam dizendo que a crise não está perdoando ninguém.

Mal percebo quando seus olhos encontram os meus. Numa fração de segundo, desvio o olhar, mas repenso: não é isso que eu devo fazer. Volto a olhá-la, comprimo os lábios e sorrio sem mostrar os dentes. Uma lágrima compadecida me escorre pela face, em solidariedade a sua dor. Ela se esforça em esboçar um sorriso e arranca. Desejando que ela compreenda que não está sozinha no mundo, sigo rumo ao pôr-do-sol.

(Andreia Evaristo)
Publicada no Jornal A Notícia, em 20 de fevereiro de 2016.

2 comentários :

  1. Ahahah tão eu! Isso de ficar observando o que acontece a minha volta e registrar em forma de texto é inevitável para mim... Confesso que deu vontade de saber mais sobre a cena!

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    1. A vida da gente só tem sentido quando a gente se dispõe a olhar para o lado, né, Ana?
      Eu também queria ter podido saber mais sobre a mulher, sobre o motivo de suas lágrimas, mas o sinal abriu e não foi possível.
      Beijo grande.

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