sábado, 5 de dezembro de 2015

Foco narrativo e os tipos de narrador

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Quando você produz um texto em prosa, seja ele um conto, uma crônica, um romance ou qualquer outro tipo de história, precisa escolher um foco narrativo. Você deve ter aprendido na escola que a narração pode ser em primeira ou em terceira pessoa, certo? Mas ela também pode ser em segunda pessoa. Vejamos.

Narrador em primeira pessoa


Levamos em consideração as pessoas do discurso. A primeira pessoa do singular equivale a eu (se fosse a primeira do plural, seria nós). Assim, um narrador em primeira pessoa conta algo que aconteceu com ele mesmo - por isso, é natural que ele seja um narrador personagem.

Isso significa que todo texto em primeira pessoa tem como protagonista o narrador? Não necessariamente, mas é comum que isso seja assim. Pense: protagonista é o personagem que leva a história para a frente, é aquele que entra numa aventura. O narrador pode ser esse personagem? Pode. Mas pode ser um coadjuvante, alguém que está com o protagonista o tempo todo, percebendo como a aventura se desenrola, sem se envolver diretamente, mas ainda assim contando a história do seu próprio ponto de vista? Pode também.

Aliás, sobre a pergunta: Minha história pode...? Nem precisa terminar, a resposta é sempre: Pode. Em se tratando de literatura, tudo pode - desde que seja verossímil, desde que faça sentido.

O narrador em primeira pessoa é muito interessante quando você quer desvelar a história sob um único ponto de vista, particular, imprimindo uma visão de mundo específica. Você pode usar mais de um narrador em primeira pessoa (por exemplo, João narra um fato que aconteceu entre ele e Maria; depois, Maria narra o mesmo fato, na perspectiva dela) para criar um contraste entre visões de mundo diferentes.

Eu, particularmente, adoro escrever em primeira pessoa, da mesma forma que gosto de ler histórias escritas nesse foco narrativo. Há quem diga que é preciso dominar muito bem a escrita para usar o narrador em primeira pessoa, mas eu penso que depende muito do tipo de história que se está escrevendo, da sua intenção enquanto escritor com a história que está produzindo.

Exemplo de texto em primeira pessoa:

"Minha alma estava de braços abertos, à beira do precipício, e a tempestade estava se formando no horizonte. Nuvens cor de chumbo se anovelavam a minha frente. Eu sentia o vento, fresco, batendo no meu rosto, cada vez mais forte, fazendo meus cabelos voarem. Quando senti o primeiro pingo de chuva, grosso, denso, marcando minha testa, minha alma se jogou no abismo!"

(Andreia Evaristo, do livro Moving on up, ainda não publicado)


Narrador em segunda pessoa


Se pensarmos nas pessoas do discurso, a segunda pessoa do singular equivale a tu, ou seja, é aquele com quem eu falo (se for do plural, equivale a vós). Em se tratando de PT-BR da língua portuguesa do Brasil, é mais comum nos referimos ao outro como você. Assim, um texto em segunda pessoa colocaria o leitor como um dos personagens do texto.

É uma estratégia interessante, que cria uma certa tensão, dependendo do gênero que você escreve. Funciona muito bem em suspenses, em contos policiais. Pode também ter um bom resultado quando o escritor espera a empatia do leitor, ou seja, espera que o leitor se coloque no lugar do personagem criado para a história.

Exemplo de texto em segunda pessoa:
Maria, você se casou este ano, aos 16. Estava tudo indo bem, as notas na escola eram suficientes para passar de ano sem exames finais. Mas você jogou tudo para cima. Não por vontade própria – o marido assim o quis. Afinal, você se casou para ser uma dona de casa e esposa dedicada à família.
Eu não julgo você, Maria. Não sei como foi sua educação, ou quais são os valores pelos quais você norteia a sua vida. Também não sei como você acabou neste casamento, e se as vontades do seu marido respeitam suas próprias vontades. Isso tudo diz respeito somente a você.
(Andreia Evaristo, crônica Volta Maria!)


Narrador em terceira pessoa


Eu penso que esse seja o tipo mais comum de narrador. Se pensarmos nas pessoas do discurso, a terceira pessoa do singular equivale a ele(a) (ou eles(as), se for no plural). Ou seja, é o narrador que não fala de sua própria experiência, mas sim conta a história de outro(s) personagem(s).

O narrador em terceira pessoa pode ser onisciente e onipresente, ser como Deus e saber o que acontece com todos os personagens e os que eles pensam e sentem. Ou não, ele pode ser um mero observador, que conta a história de um ponto de vista de quem viu algo acontecendo. Ele pode, ainda, ser um narrador que sabe tudo o que acontece e o que se passa na cabeça de um único personagem, imprimindo no texto as ideias deste, mas não dos demais. Enfim, são muitas as possibilidades.

Exemplo de texto em terceira pessoa:

Ela tinha o peito de fora.
E pendurado no peito, a cria, mamando, como cabe aos mamíferos de qualquer espécie.
Não tinha pudores. Seu instinto de mãe já havia deixado de lado qualquer vergonha que a exposição poderia trazer. Ela bem sabia que os olhares poderiam sensualizar – e sexualizar – um ato que era natural, puro e inocente. Mas a preocupação com o filho sobrepujava qualquer mal entendido (para usar aqui um eufemismo).
(Andreia Evaristo, "Pobre fazendo pobrice")


Eu preciso escolher um único foco narrativo?

Não. Desde o Modernismo, a literatura se libertou das amarras que ditavam o que podia e o que não podia ser feito num texto. Hoje em dia, você é livre para escrever como achar melhor. Isso significa que você vai fazer a louca sair escrevendo do jeito que lhe vier na telha? Não necessariamente.

a) Intenção:

Pense na intenção do seu texto quando for escrevê-lo. Sabendo o que você espera gerar no seu leitor com o texto que produzir, você poderá escolher qual o melhor foco narrativo para o seu texto.

b) Mude de ideia:

Se você começou um texto em terceira pessoa e, mesmo tendo escrito umas vinte páginas, acha que ele ficaria melhor se fosse escrito em primeira, reescreva-o e tire a dúvida. Não tenha medo de mudar - seu texto não é sagrado e pode ser alterado quantas vezes você achar que deve.


c) Mescle:

A modernidade nos dá essa liberdade de criar. E o processo de criatividade, muitas vezes, passa pela mistura. Mescle os focos narrativos: escreva um capítulo em primeira pessoa, como o protagonista da história. No capítulo seguinte, escreva em terceira, como o melhor amigo do protagonista. Invente. Tente. Experimente.

Exemplo de texto mesclando primeira, segunda e terceira pessoa (embora predomine a primeira):

Tenho muitos nomes. Só não tenho voz, apesar da minha infinita vontade de gritar. Meu grito é abafado pela vergonha, pelo medo do julgamento, por não querer lidar com quem pode vir a dizer que a culpa foi minha. Tenho muitos rostos, muitos corpos. A cada quatro minutos, eu viro estatística. Posso ser sua vizinha, sua irmã, sua mãe – até mesmo posso ser você.
Olhe para o lado: talvez eu esteja aí; talvez sejamos mais. Você nunca saberá, porque a maioria de nós não conta, a maioria se cala, se enrola como um caramujo na casa.
(Andreia Evaristo, Uma a cada quatro minutos)

2 comentários :

  1. Olá, estou lendo um livro e ele me deixou intrigada sobre sua estrutura narrativa. No livro ela está referindo-se a ela mesma porém usando o "você". Não sei se ela está contando na primeira ou na segunda pessoa. É mais ou menos quando você está contando algo que aconteceu com você em alguma rede social, mas fala como se fosse a pessoa que está lendo, por exemplo:
    "Você está vendo tv e de repente sua mãe começa a falar tão alto que você se quer consegue ouvir o que está sendo dito no programa".
    Consegue me esclarecer essa duvida? Se essa estrutura está na primeira ou na segunda pessoa?

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    Respostas
    1. Olá, Kim
      Eu gostaria, mesmo, de ler o livro e conferir como ele é narrado. heheheh
      Mas, considerando apenas o que você apontou, se a pessoa está narrando sobre ela mesma, o foco narrativo é em primeira pessoa (mesmo que ela use pronomes que se refiram à segunda). Muitas pessoas, inclusive, em suas falas habituais, usam a terceira pessoa para se referirem a si mesmo. Minha mãe vive fazendo isso, quando diz coisas como: "Dá aqui, deixa a mãe te ajudar." Apesar de ela se referir a si mesma como se fosse outra pessoa, ainda assim, ela está falando dela mesma. Então, o foco é em primeira pessoa, usando os tempos verbais e os pronomes da terceira.
      Consegui esclarecer sua dúvida?

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